ficou-lhe o pé para dentro, ao invés do da minha mãe que lhe tinha ficado para fora, ficou-lhe para dentro e até um pouco para trás, e doÃa-lhe muito, e o meu pai viu-a e disse, eis o teu corno meu filho, se não o tivesses feito o povo esqueceria, assim vais ter os cornos à mostra a vida toda.
- valter hugo mãe, o remorso de baltazar serapião
não querendo eu ser diferente de todos os outros crÃticos, ou igual já que a comparação é por mim introduzida, também eu, ao comentar a obra de valter hugo mãe, imito o autor na sua revolta contra as letras maiúsculas. segundo o próprio, serve para acelerar a leitura e a verdade é que, não sei se à conta das minúsculas se da prosa escorreita, a leitura de
o remorso de baltazar serapião foi para mim uma prova de velocidade, um livro do qual não consegui desviar os olhos.
valter hugo mãe quis dar-lhe uma escrita datada, para melhor introduzir o leitor nos jeitos rurais do portugal da idade média e conseguiu-o. os diálogos parecem extraÃdos de textos com quase tantos anos como os da fundação do paÃs e a escrita, apesar de se estranhar ao princÃpio, corre bem dentro de nós logo a seguir até a uma altura em que, quando damos por ela, estamos a pensar na mesma linguagem com que
o remorso de baltazar serapião foi escrito.
o livro conta na primeira pessoa a vida de baltazar, empregado de d. afonso e filho de pai com mesmo nome que o seu senhor. o seu irmão, aldegundes, torna-se pintor após a morte da mãe e a sua irmã, brunilde, desde cedo que trabalha na casa senhorial com
part-times em serviço privado ao seu senhor. baltazar apaixona-se por ermesinda, com quem casa por vontade parental. seu amigo de sempre, teodolindo não consegue mulher que não seja para se aliviar, sempre a teresa diaba, usada como alguidar de fluÃdos masculinos por toda a aldeia. os serapião têm, no entanto, uma peculiaridade, uma vaca não de uso mas de estimação, a sarga, que parece viver muito para além da sua idade devida só de carinho pela famÃlia. carinho recÃproco que lhes valeu o seu próprio nome de famÃlia ser substituÃdo pelo da vaca, ficando todos os daquela laia conhecidos como "os sarga", para o bem e para o mal. corre mesmo a lenda entre as pessoas da aldeia que os filhos de afonso não são filhos da própria mãe mas da ligação ilÃcita entre homem e vaca. à parte isso, os sarga, ou serapião, levam uma vida simples como os outros daquele tempo. isto até ao casamento de baltazar e ermesinda. pois que o senhor feudal daquelas terras, d. afonso, mandou que ermesinda, menina mais bela de toda a povoação, o passasse a visitar todos os dias, bem cedo pela manhã, ainda antes de d. catarina sua mulher acordar. o que, está claro, não caiu no goto de baltazar que logo começou a desconfiar da infidelidade da mulher com o patrão mesmo com todas as negações que a bela ermesinda proferia. aqui começa a desgraça de baltazar e dos sarga, perdão, dos serapião.
este livro é um murro no estômago, e perdoem-me a expressão tão batida em jornais e revistas por esse mundo fora, de todos aqueles cantores do infortúnio que pregam que a palavra escrita está tão morta quanto os seus maiores mestres. antes pelo contrário, viva que está, tal como alguns dos que melhor a dominam, esquecendo mesmo saramago e lobo antunes, temos em jovens autores como valter hugo mãe a prova de que a escrita rejuvenesce a cada ano que passa. nesta obra, valter hugo mãe brinca com as letras e enterra-nos num passado português que por vezes fazemos intenção de esquecer e que, ao pensarmos nisso, não é tão passado assim. falo, é claro, do tema central e despercebido da obra, que mais que esmiúfrado foi por crÃticas de todos os jornais do paÃs, falo da violência doméstica presente ao longo de todo o texto como um murro bem dado, e perdoem-me a repetição da fraca expressão, nos costumes que parecem enraizados no mundo português, já desde aqueles tempos longÃnquos em que um homem podia ser dono de outros iguais a ele só por morarem em terras que lhe foram oferecidas por real bondade.
De salientar ainda a brilhante escolha dos nomes dos personagens. talvez se afastem um pouco da realidade, mesmo daquele tempo, à excepção de nomes mais comuns como afonso ou baltazar, mas é inegável o sorriso que ler o nome dagoberto ou aldegundes causa no primeiro impacto ao leitor.
o livro parece calejado de sexo por toda a parte. de que outra maneira poderia ser se esse parece ser, mais do que o dinheiro, a raiz de todos os males humanos e, ao mesmo tempo, de todos os prazeres? fala-se tanto de sexo que dois capÃtulos lidos e já nem nos apercebemos disso. valter hugo mãe tem o condão de pôr o leitor à vontade no que toca a falar de assuntos que para muitos são ainda mantidos entre portas. fala-se em cobrições, em desejo, em violação consentida com tamanho à vontade, como coisa tão natural para os homens daquela época, que nos fica a dúvida se a evolução do português trouxe de bom alguma coisa ao fruto proibido. parece afirmado que evoluÃmos para esconder o prazer do sexo que se pensa aliado da violência, quando não devia ser assim. talvez seja essa a mensagem que o autor quis transmitir, mais que denunciar a violência contÃnua desde os tempos feudais. talvez valter hugo mãe aproveite para dizer que escondemos o sexo porque o associamos a um acto de violência ancestral contra o género feminino.
a verdade é que naquele tempo, tanto o sexo como a violência doméstica, não eram motivo de vergonha. antes pelo contrário, vergonha era a do homem que não tivesse mão na sua esposa. tanto era o medo que o protagonista tinha de ser cornudo que marcava a esposa para que todos soubessem que pelo menos manso não era. valter hugo mãe retrata de modo magistral, na pessoa de baltazar, a angústia de um homem simples e rude que, de tanto amar a mulher, como ele próprio diz, a parte de pancada. a dor de baltazar, compreensÃvel se fosse atenuada por atitudes diferentes é deliciosamente explorada por este talentoso escritor.
muito mais fica ainda por dizer deste livro e desta prosa, tão diferente de tudo o que temos visto nos últimos tempos. Por isso valter hugo mãe é um autor a não perder de vista, ainda para mais que acaba de lançar um novo livro "o apocalipse dos trabalhadores". se vos pareceu estranha a linguagem ao longo desta análise, não estareis errados - o efeito da prosa diferente de
o remorso de baltazar serapião parece ter uma longa duração, os meus leitores que me perdoem, e o autor se lhe chegar aos olhos esta crÃtica, por tão má tentativa de imitação de estilo, mas juro que é involuntário. ainda lhe vou tomar o gosto é a escrever em minúsculas, pode não melhorar a leitura, mas a escrita é muito mais fácil para um preguiçoso como eu.
escrito originalmente aqui.