Antonio
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« em: Dezembro 13, 2007, 14:03:32 » |
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Norberto Branco era cego de nascença. Era cego há trinta e cinco anos, filho de pais também invisuais e já falecidos. Talvez por isso, desde muito novo se habituou a sobreviver num mundo que não foi criado para ele e pessoas como ele. Frequentou escolas especiais e, com a ajuda da ACAPO – Associação dos Cegos e AmblÃopes de Portugal conseguiu um emprego como telefonista numa empresa particular. Não foi fácil mas a sua determinação, capacidade e competência tinham dado uma preciosa ajuda. Era um pouco baixo e anafado e já tinha uma considerável calva. Vivia num quarto alugado a um casal de reformados que assim tinham um pouco da sua companhia e da de uma jovem estudante de Biologia que viera de uma vila beirã. Mas tinham também um complemento para a reforma. Norberto todas as manhã saÃa cedo da casa que ostentava uma traça arquitectónica dos anos cinquenta como quasi todas as outras que ficavam nessa sossegada rua. Andava a pé cerca de quinhentos metros, sempre com a ajuda da vara de liga de alumÃnio, que era fundamental, até uma artéria muito mais movimentada onde apanhava um autocarro que parava praticamente à porta do emprego. Almoçava sempre num café modesto que servia refeições e se situava quasi ao lado do prédio onde se localizava a empresa. Às cinco e meia iniciava o mesmo percurso mas em sentido contrário. Tinha uma namorada, também invisual, que trabalhava numa cantina mas só costumava encontrar-se com ela aos fins-de-semana. Numa tarde amena de Maio, quando regressava e já na rua onde morava, ouviu uns passos atrás de si. Nada de anormal. A via não era movimentada mas também não era deserta. Quando parou para contornar um obstáculo que não era habitual estar nesse ponto, os passos deixaram de se ouvir. Retomou a marcha e novamente quem estava a caminhar muito perto dele reatou o movimento. Parou outra vez para atravessar a passadeira para peões que sempre usava e o som que lhe despertara a atenção deixou de se fazer ouvir. Atravessou e continuou a marcha, apercebendo-se de que, do outro lado da rua, os passos continuaram. Parou à porta, abriu-a e entrou. Escutou antes de a fechar e sentiu o retomar da marcha do transeunte misterioso. Contudo, após cinco minutos em casa esqueceu o assunto. No dia seguinte e novamente ao chegar à rua onde residia, sentiu os mesmos passos. Estacou de repente, propositadamente, e o enigmático homem, pois conseguiu aperceber-se de que se tratava, com grande probabilidade, de um homem, parou. Retomou a caminhada e lá ressurgiram os passos. Começou a ficar intrigado e receoso. Parou junto da passadeira e tudo se passou como no dia anterior. E foi assim mais duas vezes. Combinou então com a jovem estudante, a Sara, que no dia seguinte ela estaria a espreitar pela janela à hora dele chegar para ver quem seria a estranha personagem. E no outro dia: - Olá, Norberto! Ele exigira que a moça deixasse de o tratar por senhor. - Olá, Sara! Boa tarde! Então? - Pelo que vi, trata-se de um jovem, talvez com uns dezoito anos e com ar de quem não tem muito dinheiro – disse a rapariga. - Mas tem um aspecto perigoso? De ladrão? Drogado? Tresloucado? – perguntou o invisual. - Não me pude aperceber desses detalhes, mas não me pareceu fora do normal. Mas notei bem que andava a segui-lo. - Intrigante! – exclamou o Norberto passando a mão pelo pouco cabelo – Amanhã a Sara está cá a esta hora? - Amanhã não! Mas depois de amanhã estou. - Então não se importa de ficar outra vez em observação que eu vou meter conversa com ele? – perguntou o homem. - Se quiser até vou para junto da passadeira no passeio do outro lado. E continuou a jovem: - Assim, não só o poderei ajudar se houver alguma complicação como observarei melhor o rapaz. - Boa ideia! Faz-me esse favor? - Claro que sim! Também estou a ficar muito curiosa – confessou a rapariga. Dois dias depois a cena parecia uma reposição do mesmo filme até que, ao parar na passadeira, o Norberto virou-se para o local onde supostamente estaria o jovem e disse: - Porque é que me andas a seguir? Conheces-me? Fiz-te mal alguma vez? Que pretendes de mim? O rapaz ficou estático e nada disse. Até que o cego falou de novo: - Então? Comeram-te a lÃngua? - Peço desculpa! Mas o senhor é o meu pai! – disparou o jovem, quasi fulminando o Norberto. - Eu? Deves estar enganado. Mas mesmo que o fosse, isso não justificava essa perseguição tão estranha. Se querias falar comigo, metias conversa, não achas? – interrogou o mais velho. - Sim! Peço desculpa! - Mas agora diz-me: que idade tens? - Dezoito anos – respondeu o rapaz. - Isso quer dizer que, se fosses meu filho, eu te teria gerado com dezasseis anos. ImpossÃvel, porque só iniciei a minha vida sexual com dezoito anos. Mas quem é que te meteu isso na cabeça? – continuou o Norberto a tentar desvendar o enigma. A Sara continuava ali, junto deles, a ouvir atentamente a conversa. - A minha mãe disse-me que o meu pai era cego e se chamava Norberto – confidenciou o jovem deixando o homem ainda mais confuso. - E quem é a tua mãe? – perguntou. - É a Clara! - Ahh... – exclamou o invisual – de facto, conheci uma rapariga chamada Clara nessa altura, quando tinha dezasseis ou dezassete anos. Cega também! Tivemos um namorico mas nunca tivemos relações sexuais, por isso não sei que ideia é essa de ela dizer que sou o teu pai – disse o homem já um pouco irritado. - Eu agora não lhe posso explicar, mas se falar com ela fica a saber – aconselhou o jovem. - Nunca mais a vi desde essa época. Onde vive ela? – perguntou o Norberto. - Aqui perto! Quando quer falar com ela? Amanhã? – sugeriu o moço. - Está bem! Amanhã podes esperar por mim à saÃda do autocarro? - É melhor ser eu a entrar porque é nessa carreira que se vai para minha casa – esclareceu o jovem. - Sendo assim, está atento que eu faço sinal. Espero que me vejas pois eu não te posso ver. - Sim senhor! - Ahh...como te chamas? - Tiago! - Então até amanhã, Tiago! – despediu-se o Norberto. O cego e a Sara foram para casa e falaram sobre o assunto: - Eu achei o moço um tanto estranho! – disse a rapariga – Estava sempre a olhar para o fundo da rua como se alguém conhecido fosse aparecer de repente. - Tudo isto me parece bastante esquisito, mas amanhã espero tirar as coisas a limpo. - Quer que vá consigo? – ofereceu os seus préstimos, a estudante. - Não, muito obrigado! Não me parece que corra nenhum risco! No fim da tarde do dia seguinte os acontecimentos ocorreram como previsto. Não demorou muito que o Tiago dissesse: - SaÃmos aqui! E apearam-se ambos e mais alguns utentes. - A minha casa é pertinho – informou o rapaz. - Melhor assim! Pouco depois: - É esta! Vou tocar à campaÃnha! – e assim fez, o jovem. Apareceu uma mulher baixa e gorda, que disse: - Olá, Norberto! Sou a Clara! Lembraste de mim? - Claro que sim! Mas não falamos há mais de dezoito anos – foi dizendo o homem. - Entra para conversarmos um pouco – convidou ela. - Para isso eu vim cá. Mas sobretudo quero clarificar as coisas. - Tiago! Ficas aqui que eu quero falar a sós com o Sr. Norberto. Está bem, filho? – falou a mulher. - Sim, mãe! Uma vez sentados dentro da humilde casa, Clara começou: - Muito pouco depois de nos termos afastado, conheci um tipo que me prometeu tudo e mais alguma coisa. Acabei por ficar grávida. Quando lhe disse, desapareceu e nunca mais soube nada dele. Tive um filho a quem dei o nome de Tiago, como já percebeste. Passei muito nestes anos. Andei quasi a pedir esmola e isso não aconteceu porque tive o apoio de um grupo de senhoras ligadas a uma obra da igreja. Durou alguns anos até que me arranjaram um empregozito e esta casita. O Norberto ouvia atentamente e ela continuou: - Não sei se fiz mal, mas sempre disse ao meu filho que o pai era uma pessoa má. Em contrapartida, dizia-lhe que tinha conhecido um homem muito bom, também cego como eu, que se chamava Norberto. E dizia-lhe que tu é que devias ter sido o pai dele. Talvez por castigo, no ano passado o Tiago começou a ter comportamentos estranhos e foi para o hospital dos malucos. Os médicos acabaram por dizer que ele tinha uma doença mental grave chamada...deixa ver se não me engano...esquizofrenia. - Humm...começo a perceber... Mas ela continuou: - E assim começou a cismar que eras o pai dele. Recentemente soube, através da Amélia – lembras-te dela? – onde tu trabalhavas. Disse-o ao Tiago e agora acho que já compreendes porque ele te persegue e diz que és o pai. O Norberto estava destroçado. A vida daquela mulher com trinta e tal anos devia ser um verdadeiro inferno. Não sabia bem o que dizer, mas, ao fim de algum tempo, conseguiu articular umas palavras. - Sim, Clara! Percebo! Fez uma pausa e continuou: - Espero que essa ideia fixa que tem o Tiago, desapareça. Vives sozinha com ele, não é? Não tens nenhum homem que te apoie – perguntou, curioso, o cego. - Não! Tenho de lidar com a minha deficiência e com um filho que adoro mas que, infelizmente, é doente mental, sem quaisquer apoios, para além de um ordenado miserável e desta casinha onde entra água quando chove – lamentou-se ela. - Clara! Eu não te prometo nada, mas se conseguir melhorar a tua vida, podes ter a certeza de que o farei – falou ele, com o coração apertado. - Obrigado, Norberto! Tu foste o melhor homem que conheci na minha vida. E conversaram durante mais algum tempo. Depois o Norberto voltou a casa, comeu qualquer coisa e contou toda a história aos velhotes e à Sara. No dia seguinte, quando regressou do trabalho e se apeou do autocarro, ouviu uns passos que lhe eram familiares. Parou e disse: - Anda para o meu lado e vamos caminhar e conversar, Tiago! - Sim, pai! – anuiu o jovem. E o Norberto Branco iniciou a sua tentativa de persuadir o rapaz de que não era o pai dele. A tarefa era complicada. Passadas algumas semanas o seu pretenso filho deixou de aparecer até que uma tarde foi surpreendido pela Clara. - Olá, Norberto! – saudou a mulher. - Olá, Clara! Estou admirado porque já há uns quinze dias que o Tiago não aparece. - Nem vai aparecer mais! Suicidou-se!
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