Antonio
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« em: Setembro 16, 2007, 18:05:41 » |
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Eu era uma figura de pau modelada por um carpinteiro e artesão com jeito para a escultura em madeira. Era uma Virgem de Fátima com cerca de trinta centÃmetros de altura, vestes brancas parcialmente tapadas por um manto azul celeste, cara rosada, mãos unidas na oração de um rosário e uma auréola de fio metálico. O senhor Amadeu, meu criador, vendeu-me pouco depois de me ter colocado em exposição numa tosca vitrina do seu local de trabalho juntamente com outras peças saÃdas das suas mãos de artista. Era conhecido o seu talento de escultor e as pessoas por lá passavam frequentemente para saber o que havia de novo e que não tivesse sido encomendado ou não estivesse reservado. Não estive muitos dias ali guardada. Numa manhã de Janeiro de 1950, a D. Arminda, uma das pessoas mais ricas da vila e das melhores clientes do meu pai, por lá passou e escolheu-me para levar para casa. - O Sr. Amadeu é um verdadeiro escultor! Estes seus trabalhos são únicos! O homem sorria e recebia as poucas dezenas de escudos que pedia para pagar as horas de trabalho. E assim fui para casa da famÃlia Fonseca. Ele, o Manuel, era comerciante de fazendas e tecidos mais finos, quer para homem quer para senhora. Tinham uma filha adolescente que estudava num liceu da cidade mais próxima, viajando num comboio da manhã, para a ida e da tarde, no regresso. A D. Arminda ajudava o marido no atendimento dos clientes ficando a maior parte dos trabalhos domésticos a cargo da Carmelinda, uma jovem viçosa que era empregada da famÃlia desde que houvera uma zanga com a velha Gertrudes e que motivara o despedimento desta. Colocaram-me num móvel do corredor junto com outras peças ornamentais donde podia ver o quarto da serviçal quando a porta estava aberta. E, muitas vezes, a meio da manhã ou a meio da tarde, o Manuel vinha até casa, punha uma nota na mão da rapariga e lá Ãam os dois para o quarto dela, deixando a porta aberta para escutarem qualquer entrada inoportuna da patroa, e gozavam uma relação rápida mas animada que só não me fazia corar porque eu não o podia fazer. Entretanto a filha do casal foi para uma Universidade qualquer que ficava longe de casa, mas os encontros amorosos do Manuel e da Carmelinda continuaram durante alguns anos. Até que a rapariga, agora mulher, engravidou. Segundo ouvi a própria Linda dizer ao falar consigo mesma em voz alta, nem ela sabia se o pai da criança era o patrão ou o namorado mas, espertalhona, disse a cada um que era dele. Casou com o rapaz e foi viver para outra localidade, mas o comerciante continuou a pagar um dinheirinho à que pensava ser a mãe do seu filho homem. E assim entrou em casa uma quarentona que ocupou o lugar da jovem mamã e eu deixei de ver as poucas-vergonhas que os outros dois faziam. Que sossego! Mas, entretanto, estarÃamos em 1960, a jovem Delfina Fonseca casou e foi viver para uma casa alugada na cidade. O casamento foi religioso, segundo o ritual católico, e a mãe Arminda resolveu oferecer-me ao padre da vila que celebrara o matrimónio e este agradeceu, entusiasmado: - É muita gentileza a sua, D. Arminda! Uma Virgem esculpida em madeira pelo nosso grande artista Amadeu! E como é bonita esta peça!... Deus lhe pague pela sua bondade! Fui colocada numa cómoda do quarto de dormir do reverendo Romeu na pequena casa adjacente à Igreja onde vivia solitário o clérigo que já não andava muito longe dos cinquenta. Mas depressa descobri que a Cármen, moça baixa e roliça com cabelos longos arrepanhados num puxo, que trabalhava durante o dia na limpeza e arrumo da casa e das roupas do padre, era por este frequentemente “abençoada†depois de se despir toda para que o celibatário patrão a pudesse apreciar antes de a usufruir. Usava o homem uma coisa a que chamava camisa e que servia para não engravidar a rapariga. E assim passei mais uns anos a presenciar aquelas cenas indecorosas. Numa altura em que o padre foi chamado ao bispado, pela calada da noite, entrou lá no quarto um vulto com uma lanterna que pegou em mim e me meteu num saco onde encontrei uns candelabros e outros objectos que o larápio estava a roubar ao padre Romeu. Quando me retirou do saco, pude verificar que se tratava do Zé Diogo, um rapaz ainda novo que eu conhecia por ser amigo do pastor de almas e que, pelo que ouvia, algumas vezes ajudava à missa. Penso que escondeu o saco, onde voltou a guardar-me, numa dispensa escura mas não fiquei lá muito tempo. Ao fim de alguns dias levou-me, mais as outras coisas que subtraÃra ao “casto†Romeu, para a cidade onde, disfarçado com umas barbas postiças me procurou vender mais os meus parceiros. E assim, nos finais dos anos 60, fui colocada numa loja de antiguidades. Lá estive algum tempo até que fui adquirida pelo triplo do preço por uma velhota que usava bengala e que pareceu ter gostado de mim. Levou-me para casa onde me pôs num móvel da sala de jantar tendo junto de mim umas lamparinas de azeite que mantinha sempre acesas e uma jarra com flores que eram cuidadosamente tratadas. Vivia só com uma criada tão velha e tão tosca como ela e passei alguns anos muito sossegadamente: as anciãs até se ajoelhavam diante de mim e faziam uns pedidos muito próprios de pessoas que já pouco esperam da vida. Mas o que é bom não dura sempre e certo dia ouvi um reboliço no quarto. A velha Ambrósia, minha dona, tinha morrido nessa noite. Passados alguns dias pegou em mim a Amélia, filha da falecida que por lá passava de vez em quando e levou-me para a sua casa que ficava noutra vila. Por lá estive, pacatamente, até finais dos anos 80. Até que um dia a D. Amélia, ela mesma agora uma idosa, foi colocada num lar pela sua filha. E fiquei assim mais uns anos, sem ver ninguém excepto quando era feita uma das raras limpezas à casa. Mas a Manuela, assim se chamava a filha, parece ter mudado de residência e levou-me para uma rica vivenda onde fui instalada num móvel depois de me ter dado um banho. Parece que ela vivia numa casa simples mas, desde que o homem fora para vereador da Câmara, tinha enriquecido rapidamente. Decorria então o ano de 1998. A vida não me corria mal até que apareceu por lá um cachorro jovem e traquina que resolver escolher-me para ser um dos seus brinquedos favoritos. Ao princÃpio ainda o tentaram impedir de me espetar as dentuças afiadas mas, com o passar do tempo, o maldito animal foi-me destruindo. Eu já não era mais a bonita escultura do Sr. Amadeu mas um pedaço de madeira só com uns vestÃgios de tinta, deformada e perfurada até que fui atirada para um canto de um escuro e sórdido compartimento da cave. Mas, numa noite fria, o marido apareceu no meu local de exÃlio e levou-me para cima. Estando a lareira acesa, assim falou o polÃtico: - Ó Manela! Estava lá em baixo esta coisa. Acho que é o que resta daquela estatueta da Virgem Maria que estava em casa da tua mãe mas que o Leão estragou. Vou deitá-la aqui no fogão de sala pois já não vale nada. - Ora deixa ver! – disse a mulher – Realmente, é pena porque era uma peça com algum valor; mas agora está toda estragada. Põe no fogo, põe! E assim em cinzas me tornei, como se fosse um mortal.
Nota do autor: Este conto ficou classificado em 3º lugar (ex-aequo com outros 5) no Concurso de Contos promovido em 2007 pelo site "Ora, vejamos...". Concorreram 21 autores com um total de 67 contos. Está publicado numa colectânea não-comercial (Um Mar de Contos) juntamente com todos os outros premiados
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