Civilização

[Maria Gabriela de Sá]

Estou sem telefone
sem internet.
Voltei ao limiar de civilização
mas tenho água na torneira
luz nas lâmpadas e nas tomadas
imagem na televisão.
Não, não nasci em África
onde a água é quase o exagero da net que hoje me falta
e o limiar da civilização deles
que morrem desnutridos
corpos a que a doença se agarra
como garras de um abutre com fome
esperando a presa moribunda para lhe arrebatar a carne ainda quente.
Ah, como a hierarquia do mundo é cruel!
Como as latitudes podem fazer tanta diferença!
Entre o Norte e o Sul
apenas um mar de água salgada
que não mata a sede de África
nem dos continentes martirizados pelas desigualdades e pela guerra!
E eu aqui a lamentar a falta da Internet
e a sentir
com alguma parcimónia
a água a lavar-me as mãos
depois de o alimento que comi, de alguma forma, as ter sujado.
O mesmo alimento que falta Na África,
Ásia, América, Oceânia e Europa
aqui ao meu lado, em Portugal
onde, dia após dia, cada vez há mais fome.
E eu aqui sem net
no limiar da civilização e longe dos limiares de África
onde a água é uma necessidade
a verdadeira civilização para quem não tem a que acaba de voltar
a minha internet.
Mas, talvez me deve sentir agradecida por ter, enfim, o que tenho…

[vilde]

Nestes tempos que vivemos
quando a água sabe a pão
já a crise toca  extremos
negra civilização...

bj
mavilde

[Maria Gabriela de Sá]

Lindo, gosto de a ler.

Bj

Gabriela Sá

[Goreti Dias]

A falta das coisas é muito relativa, não é assim?

[Maria Gabriela de Sá]

Completamente. Mas o primeiro impulso é pensar no que não temos de momento e estamos habituados a ter. Só depois é que relativizamos.

Abraço

[Dionísio Dinis]

Em algumas palavras escritas com sensibilidade e inteligência se revelam grandes verdades.Em suma para quê tanto ter e nada ser!

[Maria Gabriela de Sá]

É mesmo. Hoje fiquei de rastos com a história do meu dia, ainda na mesma linha.

[Nação Valente]

Questão de ser e ter. Mas como se pode ser sem ter?

[Oswaldo Eurico Rodrigues]

É um dilema.
Ser civilizado deveria ser viver de acordo como se vive na cidade. E como viver na cidade se a cidade não é um lugar aprazível e, portanto, civilizado?
A escassez de pão e tão dura quanto a escassez da alma. A primeira mata o corpo e acaba com o ser. A segunda acaba com o ser e o deixa sobreviver sem ser nada. Apenas uma máquina de consumir e produzir e ser indiferente a falta de pão e água dos outros.

[Maria Gabriela de Sá]

Pois, realmente a cidade não é civilizada. Civilização seria mesmo toda a gente ter acesso aos bens essenciais. Todo o resto não deveria interessar assim tanto...

[Alfredo D]

Escrever, escrever, e escrever bem.Eu gostei.

[Maria Gabriela de Sá]

Obrigada, Alfredo D. Às vezes a inspiração vem de onde menos se espera...

[António Lóio]

Gabriela
Eis uma poesia "sui generis" a roçar o desabafo, mas a afastar-se do modelo poético tradicional
Tom

[Maria Gabriela de Sá]

Tem razão Tom, Eu acho que não tenho grande veia para a poesia...São mais desabafos...