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Autor Tópico: O padeiro  (Lida 3782 vezes)
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JCC
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« em: Dezembro 21, 2010, 22:26:12 »

Ao meu pai, mouro de trabalho, padeiro e muitas coisas mais.
Com saudade.
[/i]

Joga-se à batota na taberna imunda. Entra padeiro, alvo de farinha, empapado em suor, pisco da luz exterior: — Sr. João, o seu pão.
O taberneiro grunhe, sem desfitar as cartas: — Vou já. Padeiro, você bebe alguma coisa?
Um copo de três, quando puder, e colocava já sobre o balcão encardido a paga, ansiando pela bebida, tanto calor, tão longa a subida, curva após curva, ora pedalando ora empurrando pasteleira e alforges a abarrotar de pão, sempre ladeiras acima.
Termina o jogo, começa discussão azeda por entre acusações de batota, o taberneiro avia o copo e corre para a desforra. Chega-se o padeiro, desinteressado da jogatana, apenas refresca e repousa para voltar à lida. Dura vida, a trabalhar quando os outros dormem, subindo a serra, descendo encostas na venda do pão, mais dez escudos diários a somar ao magro salário. Era assim que sobrevivia – labuta dura. Lá longe, na aldeia natal, a mulher estaria agora a sachar as vinhas, talvez fosse já a caminho de casa, para pegar no cântaro e seguir para a fonte: sem água não há almoço, sem lenha também não, vida sofrida a de um e de outro, nada que tenha a ver com o tempo em que vivemos, abrimos a torneira e a água jorra, premimos um botão e a panela aquece, a comida, essa, vem de carro do hipermercado.
Os filhos não têm mimos, mas não passam fome: o suor do rosto dos pais providencia alimento e a profissão assegura, além do ordenado certo ao fim do mês, um quilo de pão de segunda por dia. Com o que arrancam à terra, a venda do vinho e de um dos dois porcos que criam, que o outro é para consumo próprio, conseguem viver remediadamente, o que não quer dizer facilmente.
A vida arrastada começa logo à meia-noite, após breves horas de sono. Resmunga em resposta aos chamamentos e abanões da mulher, será preciso mais de uma hora insistindo, beliscando: — Afonso, Afonso, acorda, está na hora!
Levanta-se zombie, pedala duas léguas até à padaria na vila, pelo caminho aparecer-lhe-ão talvez outros mortos-vivos, estes já falecidos, falta-lhe o tempo para saber o que pretendem, é pedalar, pedalar, sempre atrasado, acender o forno, amassar, tender, deitar o pão na fornalha ardente, retirá-lo escaldante logo que cozido, arrumá-lo em cabazes, distribuí-lo, começar a venda, pedalando por essas serranias —  lá para a tarde ei-lo que pedala de regresso à aldeia onde vive, espera-o a enxada e a vinha, não surpreende que durma como pedra essas quatro ou cinco horas em que permite ao corpo repousar, que resista aos safanões vigorosos com que a mulher o tenta acordar.

— Padeiro, o troco dos meus quinhentos escudos?
— Se vossemecê ainda nem me pagou o pão? Então, não se lembra, só me aviou o copo de vinho e veio logo jogar?
O taberneiro vocifera ameaçador, esmurra a mesa: – O quê? Você nega que eu lhe dei quinhentos escudos para pagar o pão, mesmo agora, aqui, à vista de toda a gente?
Os parceiros da batota corroboram, pousando as cartas. Outros, que estavam na tasca, assistindo ao jogo, chegaram-se para perto, cortando a saída. De repente, todos viram, todos são testemunhas, todos ameaçam. O padeiro olha em volta, procura rosto amistoso, um olhar de incerteza que seja. Só vê hostilidade, não a compreende, nunca fez mal a ninguém da terra, nunca teve questiúnculas com nenhum deles.
O taberneiro levantara-se, homem corpulento e forte, e avança para ele carrancudo; os outros, jogadores e assistentes, envolvem-no ameaçadores: — Dá já o troco ao homem!
Tira da mala todas as notas, das de cinquenta, as maiores que tem, às mais pequenas, de vinte escudos, tira todas as moedas, mesmo os tostões, para mostrar que não tem nota alguma de quinhentos escudos. Apropriam-se desse dinheiro da venda, que ele terá de repor, meio salário de um mês de trabalho infernal: — Se eu tivesse uma arma não me faziam isto! E sai direito ao Sol inclemente, para continuar a labuta diária, montado na pasteleira, ténue brisa enxuga-lhe as lágrimas, afasta para longe os soluços.

Foi ao entardecer que o levaram a casa, ensanguentado de quedas, a cair de bêbedo. Vendo-me, criança de sete anos, entregaram-mo à porta da adega e lá ficámos abraçados, misturando lágrimas pela noite fora.
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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Dezembro 26, 2010, 18:54:03 »

Escrita de um realismo surpreendente e doloroso!
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Goretidias

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Eduarda
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" A ética está à altura daquilo que nos acontece"


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« Responder #2 em: Dezembro 26, 2010, 23:24:42 »

JCC,

Um cruel realismo de tantos, que nos afronta, que nos faz reflectir.

bj
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JCC
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« Responder #3 em: Dezembro 27, 2010, 22:14:51 »

Muito obrigado. Para suavizar, vou colocar um conto curto menos dorido: "É isto o amor".
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britoribeiro
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« Responder #4 em: Janeiro 05, 2011, 19:31:17 »

Vidas duras, gestos atrozes. Muito bom!
Abraço
BR
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Dionísio Dinis
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« Responder #5 em: Janeiro 06, 2011, 20:03:10 »

Lê-se com o máximo prazer na certeza de se estar perante prosa de muito boa cepa.Os meus sinceros aplausos.
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Pensar amar-te, é ter o acto na palavra e o coração no corpo inteiro.
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JCC
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« Responder #6 em: Janeiro 06, 2011, 23:06:23 »

Muito obrigado. Em especial -- não é ironia -- pela referência à cepa. Tal como o Dionísio da antiguidade, costumo dizer de mim próprio que sou filho da uva, neto da cepa.
Zé
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« Responder #7 em: Janeiro 11, 2011, 20:30:17 »

Vida d'um raio! Gostei :yup:
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Pedro Ventura
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« Responder #8 em: Janeiro 11, 2011, 22:14:48 »

Muito bom este conto!

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Maria del Mar
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« Responder #9 em: Janeiro 22, 2011, 16:41:03 »

Um conto de extremo realismo. O mundo é dos "espertos" Angry
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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Olá para todos!
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Boa feliz noite para todos.
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Bom fim de semana para todos
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Boa noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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