Ao meu pai, mouro de trabalho, padeiro e muitas coisas mais.
Com saudade.
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Joga-se à batota na taberna imunda. Entra padeiro, alvo de farinha, empapado em suor, pisco da luz exterior: — Sr. João, o seu pão.
O taberneiro grunhe, sem desfitar as cartas: — Vou já. Padeiro, você bebe alguma coisa?
Um copo de três, quando puder, e colocava já sobre o balcão encardido a paga, ansiando pela bebida, tanto calor, tão longa a subida, curva após curva, ora pedalando ora empurrando pasteleira e alforges a abarrotar de pão, sempre ladeiras acima.
Termina o jogo, começa discussão azeda por entre acusações de batota, o taberneiro avia o copo e corre para a desforra. Chega-se o padeiro, desinteressado da jogatana, apenas refresca e repousa para voltar à lida. Dura vida, a trabalhar quando os outros dormem, subindo a serra, descendo encostas na venda do pão, mais dez escudos diários a somar ao magro salário. Era assim que sobrevivia – labuta dura. Lá longe, na aldeia natal, a mulher estaria agora a sachar as vinhas, talvez fosse já a caminho de casa, para pegar no cântaro e seguir para a fonte: sem água não há almoço, sem lenha também não, vida sofrida a de um e de outro, nada que tenha a ver com o tempo em que vivemos, abrimos a torneira e a água jorra, premimos um botão e a panela aquece, a comida, essa, vem de carro do hipermercado.
Os filhos não têm mimos, mas não passam fome: o suor do rosto dos pais providencia alimento e a profissão assegura, além do ordenado certo ao fim do mês, um quilo de pão de segunda por dia. Com o que arrancam à terra, a venda do vinho e de um dos dois porcos que criam, que o outro é para consumo próprio, conseguem viver remediadamente, o que não quer dizer facilmente.
A vida arrastada começa logo à meia-noite, após breves horas de sono. Resmunga em resposta aos chamamentos e abanões da mulher, será preciso mais de uma hora insistindo, beliscando: — Afonso, Afonso, acorda, está na hora!
Levanta-se zombie, pedala duas léguas até à padaria na vila, pelo caminho aparecer-lhe-ão talvez outros mortos-vivos, estes já falecidos, falta-lhe o tempo para saber o que pretendem, é pedalar, pedalar, sempre atrasado, acender o forno, amassar, tender, deitar o pão na fornalha ardente, retirá-lo escaldante logo que cozido, arrumá-lo em cabazes, distribuÃ-lo, começar a venda, pedalando por essas serranias — lá para a tarde ei-lo que pedala de regresso à aldeia onde vive, espera-o a enxada e a vinha, não surpreende que durma como pedra essas quatro ou cinco horas em que permite ao corpo repousar, que resista aos safanões vigorosos com que a mulher o tenta acordar.
— Padeiro, o troco dos meus quinhentos escudos?
— Se vossemecê ainda nem me pagou o pão? Então, não se lembra, só me aviou o copo de vinho e veio logo jogar?
O taberneiro vocifera ameaçador, esmurra a mesa: – O quê? Você nega que eu lhe dei quinhentos escudos para pagar o pão, mesmo agora, aqui, à vista de toda a gente?
Os parceiros da batota corroboram, pousando as cartas. Outros, que estavam na tasca, assistindo ao jogo, chegaram-se para perto, cortando a saÃda. De repente, todos viram, todos são testemunhas, todos ameaçam. O padeiro olha em volta, procura rosto amistoso, um olhar de incerteza que seja. Só vê hostilidade, não a compreende, nunca fez mal a ninguém da terra, nunca teve questiúnculas com nenhum deles.
O taberneiro levantara-se, homem corpulento e forte, e avança para ele carrancudo; os outros, jogadores e assistentes, envolvem-no ameaçadores: — Dá já o troco ao homem!
Tira da mala todas as notas, das de cinquenta, as maiores que tem, às mais pequenas, de vinte escudos, tira todas as moedas, mesmo os tostões, para mostrar que não tem nota alguma de quinhentos escudos. Apropriam-se desse dinheiro da venda, que ele terá de repor, meio salário de um mês de trabalho infernal: — Se eu tivesse uma arma não me faziam isto! E sai direito ao Sol inclemente, para continuar a labuta diária, montado na pasteleira, ténue brisa enxuga-lhe as lágrimas, afasta para longe os soluços.
Foi ao entardecer que o levaram a casa, ensanguentado de quedas, a cair de bêbedo. Vendo-me, criança de sete anos, entregaram-mo à porta da adega e lá ficámos abraçados, misturando lágrimas pela noite fora.