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Autor Tópico: O relojoeiro sem tempo  (Lida 2979 vezes)
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« em: Janeiro 17, 2010, 16:23:04 »

Eram dele todos os relógios. Não as horas, dizia amiúde  para quem o quisesse ouvir.
Dizia-o por debaixo do monóculo com que afinava a luz do dia nas pinças pudicas com que lhes tocava os órgãos expostos, desventrados, oxidados pela corrosão salobra em proximidade à borda-d’água. Milhentos relógios que guardava em precisão cirúrgica e que cuidava em  hiantes  de abismos matinais.
Ria-se deles, algo trocista. Sem ele, seriam... nada. Caixas disfuncionais de ressonância vazia.

Perdera há muito o rasto do dia em que, cada um, chegara à sua vida. Alguns (muitos) tinha quase a certeza de que os herdara num qualquer tácito testamento - de pai para filho, de espaço em espaço, de loja em loja,  onde a família assentara arreais, da Rua da Alegria à Belavista, onde agora,  para seu desconcerto, os sons do rock suplantavam a aficion dos demais passante, que ainda há tão pouco tempo, se rendiam  Ã  sua arte.
Da costureira de bairro, à varina, passando pela menina de análises laboratoriais, que trabalhava, dissera-lhe um dia, no Parque das Nações...

Outros (dos seus relógios) juraria que os havia comprado em leilão, em hasta pública. Tudo podia acontecer, não é verdade?  E acontecia, não raras vezes, o que, em rigor da história e para o caso, não mudada uma virgula.

Eram dele todos os relógios, portanto,  e, para que constasse,  dele a vontade de a todos manter vivos - dava-lhes corda, a espaços, paulatinamente, um a um, sem desconcentro. Centrava-se na presunção de que, dessa maneira, cada graveto de metal de que cada qual era composto, cada átomo de poeira que tentasse encravar a engrenagem, cada rolamento minúsculo, cada filamento de cobre, todos, mas todos, fosse qual fosse a função ou o seu oposto (virtude disfuncional), sem qualquer dúvida,  saberiam onde e quando, estava a pinça do comando, alinhados em carreira, antes que manifestassem a seus olhos nequívocos sinais de estrabismo e cegueira. De agonia pulsante. De desvio. De  disrupção. Eram relógios certeiros, de ritmos obedecidos. Nutridos e animados pelo desvelo de seus cuidados…Afirmava!

Eram dele todos os relógios, pois, tão óbvio quanto claro, que comandava ao som crepuscular de um barítono escondido algures numa qualquer distante estação de que, ele, e apenas ele, detinha a chave mestra em mão. Não a vendia nem a trocava por qualquer outra atracção e, como já se disse, noite e dia zelava, para que, há hora exacta, no minuto certo, na casa toda, unida na vertical, por patamares, varandins, escadas - angulares, de caracol - , de alto a baixo, em cada piso, em cada sala, em cada quarto, em sintonia, ecoassem certas as badaladas, os cucos saíssem,  se cantassem as “avés-marias†nas madeiras ressequidas em sincronia ritualista, pois que - ele aprendera na Bíblia -, Deus tivera a certíssima intuição de criar o mundo ao sétimo dia...
E, se assim fora, só pudera ser porque, nalgum lugar escondera o relógio da criação - um solista confiante que lhe havia soltado a nota certa em pavilhão d’ouvido…Ao sétimo dia, fazia todo o sentido!!!
Um alquimista, alguém que sabia de metafísica? - indagavam do demais.
Pois, a isso não tinha como responder… Desde criança, mais cedo que cedo, o que lhe fora dado aprender fora da mecânica dos relógios, da forma exageradamente contorcionista e necessária para subir e descer a todas as bancadas, a todos os escaparates, a todos os expositores, sem nenhum esquecer,  e, não menos, a importância de ter, bem exercitados,  todos os cinco sentidos. E um sexto, se é que isso poderia acontecer.
Não sendo mareante, como se disse, vivia à beira mar e sabia da importância de saber medir a distância angular dos astros : o quão distantes estão acima do horizonte… Na sexta parte do circulo, num ângulo de 60º, na perfeição do sextante, o seu sexto sentido, dera-lhe então a necessária intuição para, naquele mar de grunhidos, em prenuncio de tempestades, por o corpo a pensar. Todo o corpo, indo mais e mais longe, que as leis lógicas da razão. É de emoção que estamos a falar…

Tomou-se de solipsismos  - afinal não fora sempre a sua vida, a mais completa solidão? -vestiu-se a rigor. Casaco azul escuro, assertoado. Não antes de se ter lavado minuciosamente, num banho de tina, demorado. Ainda envolto numa toalha aquecida, dirigiu-se frente ao espelho. Num bafo quente, desembaciou-o. Olhou-se demorada e minuciosamente. Pegou na navalha, que afiou. Colocou-a de lado. Depois a espuma, numa emulsão meio oleosa - a pele seca a tanto obrigava. Mexeu e remexeu, até que, por fim, quando a caneca transbordou, achou o tempo certo. Esticou a pele o mais que pode, deslizou a lâmina sobre a maçã de Adão.
Não, ainda não era o momento.
Dirigiu-se ao quarto. Vestiu, uma a uma todas as peças previamente preparadas. Calçou-se "que um homem nunca pode ser apanhado descalço!!!". A custo, dobrou-se, abotoou os atilhos dos sapatos. Olhou-se de novo no espelho, agora do quarto. De alto a baixo... Aproximou-se da janela. A tarde caia nos fios de telefone. O advento da electricidade... "grande obra a do homem, sua Santidade"
Esboçou um sorriso trocista. Colocou o relógio no pulso, cofiou o bigode...

 Aos poucos, um a um, todos os relógios da casa deixaram de trabalhar. O silêncio total. Apenas os ratos, desinquietos, trepam mesas desconchavadas pelo caruncho e os pés de galo das cadeiras. O cheiro nauseabundo.
Em forma disforme, uma teia de aranha tece a rede e une, um a um, cada peça de um puzzle em  desconstruto.

Foi a enterrar ontem. Dizem, contudo,  que já tinha morrido há muito … ninguém sabe em rigor quando. Eram dele todos os relógios…
             Não as horas.
O seu nome?  Arguto.  Ludovino Arguto.  Ou Lulu, para os amigos ...


...
(nota: este conto faz parte da "saga" dos Lulu's, que poderá ler no meu blog
www.noitedemel.blogspot.com e, de igual modo, aqui, no EA)

« Última modificação: Janeiro 19, 2010, 08:13:32 por Mel de Carvalho » Registado

Mel de Carvalho
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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Janeiro 17, 2010, 17:18:09 »

Donos da medição do tempo, foge-nos o próprio tempo por entre as horas que os relógios deixaram de marcar. Um maravilhoso conto!
Beijo
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carlossoares
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« Responder #2 em: Janeiro 17, 2010, 19:31:40 »


Mel,

Um conto que é uma lição, assim uma espécie de trabalho de relojoaria, pela minúcia descritiva, pelos elementos pormenorizados, pelo ritmo e pela corda certa acerca do tempo e dos tempos.
Abraço
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Carlos Ricardo Soares
Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« Responder #3 em: Janeiro 19, 2010, 08:19:51 »

Goreti, Carlos Ricardo,

como ambos entenderam, este conto (fabulista)  pretendia colocar a tónica sobre os automatismos desviantes que, não raras vezes, se tentam apropriar das vidas (as horas) de cada um de nós e que, por comodismo, se "esquecem" que também eles, comuns mortais, dependem de "cordas" - sejam estas o trabalho do padeiro, o agricultor... na roda da vida, engrenagem pulsante, todos dependemos de todos... mas não somos propriedade de ninguém...

Grata pelas vossas leituras e comentários
Fica um fraterno abraço a ambos
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CAMPISTA CABRAL
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« Responder #4 em: Janeiro 25, 2010, 09:08:51 »

Belo e expressivo conto! O poder do tempo! O tempo que nos move e que nos enlouquece! Somos perseguidores da juventude e somos perseguidos pelas datas, dias, minutos... Escravos obedientes ou escravos rebeldes, mas escravos do tempo!

Um grande abraço!
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Olá para todos!
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Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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