damasco
Membro da Casa
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Frase é uma palavra. Palavra não é uma frase.
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« em: Julho 27, 2009, 22:30:45 » |
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Na cozinha, o avô planeia construir sistema de cozedura, diz ele que as batatas requerem o tempo exacto, não vá o lume querer-lhes o sabor. Os ombros largos, não tão largos assim, embora o pareçam, deve ser a porta a fazer-lhes o favor, encostam-se, e a pele que é a dos ombros também raspa dura a parede, é uma daquelas camisolas que nem tem mangas, uma pequena tira nos ombros é tudo quanto, entra ele, nem se importa das portas e das paredes, tal e qual os ombros: assim desimportados da pele que lhes fica meio que viva ainda a esmorecer cal adentro, o olhar rouco de quem nem vê muito bem mas prefere isso a andar de óculos, ele bem os tem, os óculos, partilha-os muitas vezes com a prateleira das louças, tão cheia de pó e de fuligem feita, quase assim nasceu, passa ele a pele pela parede, um leve roçar, e ficou ali parado, diz-se um segundo, mas ainda maior que um segundo, e depois decidiu-se, as panelas, não: a panela, a panela já à espera de água para ferver. Avô, digo-lhe, e sai-me coisa estranha pela boca, nem sei que lhe digo, sempre o nome me soube a estranho, as palavras agarradas também à pele, ou já as palavras na minha pele a fazerem-se rogadas de terem sido ditas, E? Não me sai o resto, como ficasse apenas o fantasma do avô com quem falar, ou a pele dele de encontro à parede rugosa. E ele lá entrou, usa-se das mãos para fazer as coisas, as mãos nem bem dele, não as olha a usá-las, só que depois limpa-as muito bem, como instrumento precioso tomado de empréstimo. A fotografia ao lado. Aquela fotografia já ali estava antes, agora meio partida. A fotografia. Parece ter uma alma. Melhor assim: ganhou alma. De tanto se olharem as fotografias, entra-lhes um fôlego de vida qualquer e depois respiram por si mesmas. A fotografia está meio de esguelha, partiu-se-lhe uma perna e ficou coxa, ainda vai o mar cair para dentro da sala. O avô. O avô partiu aquando do suão, foi-se de baba na boca, lá ao fundo, naquele canto martelado a cimento, vejo um tijolo, talvez dois, secos, limpos, por assentar, que ficaram aquando da construção tosca, a casa de banho que nem água nem nada, fazia-lhe de quê o lavatório das mãos?: fazia-lhe de simples depósito qualquer, uma porção de água para o desfazer das barbas, o pincel molhado, o olho no espelho, ou espécie de espelho, meio roído às pontas também, os tijolos ficaram lá em cima, talvez a pisarem plástico para que a água não viesse por ali abaixo, que era coisa que não precisava quem da casa de banho se servia. Era disto que viria o avô, a barba muito aparada, mais rapada que, na verdade, aparada, notava-se todo o vermelho na cara de quem exagera o esforço, uma pequena humidade, devia ser aquele óleo muito de contra-queda de cabelos, vejo-o nitidamente aqui, os olhos meio que cerrados, inclinados e a boca como apito prestes a estalar um som agudo. A camisola, avô, que te ficou ainda ali pendurada na parede. Mas tu desapareces lá para dentro e fechas o portão de ferro que nem dá conta de ti, fecha-se tranquilo e sonolento como aquela tarde de maio; sim: maio, o mês da ressurreição da bisavó. Lá vinha ela renascer e depois ficava pouco tempo. E era maio. E tu desapareces lá para dentro. A casa esconde-se atrás do manto vermelho ferrugento que é o portão, muito tranquilo e sonolento, sem perceber que entraste lá para dentro, e nem és tu que desapareces, mas a tua inquieta, nem sei se esta é bem a palavra: diria antes: não é a tua inquieta figura que desaparece: é o teu leve e sorrateiro fantasma, quase como não fosse um fantasma à séria, que esses teimam no espaço, ou dizem que estiveram bastante tempo: o teu não foi assim: parece que és o fantasma de um fantasma, avô.
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