Maria Gabriela de Sá
|
|
« em: Novembro 06, 2013, 21:08:14 » |
|
Marte acabara de jantar, sozinho. Estava num daqueles dias sem orientação alguma, fosse para o que fosse. A solidão, sua companheira de sempre, em virtude do seu mau feitio e da sua prontidão para a guerra, nos últimos tempos agravara-se, ao ponto de os seus colegas de Olimpo o terem deixado a falar para as moscas, no último conclave sobre os problemas do planeta Terra. Diziam que Marte, com a idade, tinha piorado substancialmente e nem um cálice de porto lhe amolecia as ideias belicistas, postas permanentemente em prática pelos homens que ele, lá do alto, comandava com mão e espada de ferro, deliciando-se, malévolo, com o sangue do mundo. Marte era dos tais a quem assentava como uma luva o ditado que diz que a idade faz aos homens o mesmo que ao vinho, isto é, refina os bons e azeda os maus. Por isso, nessa noite, não lhe restava outra alternativa senão aventurar-se numa partida de xadrez, convocando para o efeito Neptuno, o único filiado que o frequentava de vez em quando. Além dos dois, quase ninguém mais ia ao clube, à excepção de Plutão, que morava nuns anexos ao fundo da casa, de onde saÃa só quando havia morte fresca por perto e, devido aos seus apetites necrófagos, nunca tivera grande simpatia dos restantes participantes. Assim, a Marte nunca passou sequer pela cabeça convidar o agoirento deus para o serão. Ainda era muito cedo para ir morar debaixo da terra, onde o colega gostava de chafurdar continuamente, e ir fazer companhia à s minhocas. Um frequentador assÃduo daquele espaço de reunião era Mercúrio. Mas esse era um jovem da plebe, sem qualquer parentesco com nenhum dos membros. Não passava de um alcoviteiro, sempre a levar e a trazer e mais rápido do que o pensamento. Recentemente ganhara até a alcunha de Computador, devido à celeridade da sua passada. E por esta caracterÃstica, o rapaz era utilizado como moço de recados. Os dois velhotes mandavam-no à mercearia por tudo e por nada. Desde ir comprar um raminho de salsa para as pataniscas de bacalhau, até um pacote de detergente, muitas vezes destinado à limpeza da casa de Neptuno que os outros sujavam como acontecera recentemente com o Prestige. O jovem vivia numa roda viva. Desde essa altura, Neptuno andava ainda com os olhos vermelhos de tanto os coçar e também não conseguira retirar aquele visco das barbas que lhe davam o aspecto de serem de plástico. Quanto ao rapazote, de xadrez percebia pouco e nem sequer se podia dizer que fosse filho de um deus menor. Por todas estas razões, nunca tivera assento nos conclaves. Ficava à porta, aguardando que o mandassem levar todas as mensagens quantas fossem necessárias, como se ele fosse um mero entregador de pizas. Sem nenhuma mulher por perto para fazer limpeza, as teias de aranha grassavam por todo o lado e até o cão de guarda, o Salter, morrera à fome. Enredados em diabruras vingativas, esqueceram-se de dar de comer ao animal e este veio a morrer numa noite de ira, desencadeada por Neptuno. Ora, a tanta caturrice ninguém conseguia resistir e as damas conchavaram ir-se embora. A primeira a bater com a porta foi Diana. Tendo-lhe calhado em sorte o ministério da caça, uma vez que tinha de matar alguma coisa, na hierarquia dos seres terrenos, ela entendeu que, a ter de matar alguns deles, ao menos que fosse em prol dos homens que, assim, ainda conseguiam deglutir umas perdizes, uns patos e tudo o mais que se colocasse à frente das suas armas. Por esta ordem de ideias, o seu mister estava devidamente justificado. Além disso, caçar, para ela, sempre fora um enorme prazer, ao ponto de, com o decorrer da civilização, ter sido atribuÃdo a essa actividade o estatuto de desporto. Após a saÃda de Diana, segui-se a de Vénus. De todas, Vénus sempre fora a Deusa mais cobiçada, entre gregos, troianos e romanos. De tal forma era solicitada que Roma, com o intuito de iludir os vizinhos, deu-lhe o pseudónimo de Afrodite, na esperança de que ela se quedasse lá pela terra. Só que a rapariga tinha tendências poligâmicas e daà o ter-se fartado de viajar pelo mundo, distribuindo sorrisos aqui e ali e tudo o mais que à s circunstâncias coubessem. Não por ser uma doidivanas como poderÃamos ser levados a pensar, mas por Júpiter, seu pai, lhe ter dado a espinhosa missão de plantar, por todo o lado, o amor, baseado numa velha teoria de que o amor andaria sempre de braço dado e aos beijinhos com a paz. Puro engano, como veio a constatar, anos mais tarde. O certo é que a rapariga era danada para a brincadeira. E não era só lá no Olimpo. Vénus não era mulher de preconceitos. Por isso, de vez em quando, descia à Terra disposta a fazer as delÃcias de algum moço bonito, como aconteceu com o pobre do Adónis. A sua voluptuosidade era tão sem medidas que até o fantasma do rapaz lhe servia para se deleitar com o seu ectoplasma quando, de meio em meio ano, ele regressava do mundo dos mortos. Bem se casara ela com Vulcano, um deus de estirpe como ela própria. Mas o marido passava a vida entre a oficina pirotécnica e o lançamento do fogo de artifÃcio, enquanto o fogo onde ela ardia se extinguia como fogueira sem lenha. Assim, estavam perfeitamente justificadas as escapadelas da bela deusa, que tantas cabeças de sexo masculino fez rodopiar. A seguir a Vénus, foi Minerva a abandonar o clube. Minerva era o supra-sumo da sabedoria. Além de ter a seu cargo o ministério com o mesmo nome, acumulava com o de belas-artes e ainda dava uma mãozinha a Marte na difÃcil pasta da guerra. Era assim uma super ministra, um bocado parecida com Manuela Azeda o Leite. Mas, estava, como quase todos os outros, um bocado cansada de ver tantas cabeças partidas e tanta destruição. Nos últimos tempos dedicava-se, sobretudo, aos trabalhos manuais e, quando não estava a fazer rendas de bilros, bordava, a ponto de cruz, uns babetes para bebés, fazendo-lhes também uns casaquinhos em lã. Ultimamente, quando ligava a televisão e lia os jornais, bem lhe apetecia desenterrar as armas ir até ao Iraque dar umas bordoadas ao pulha do Saddam e ou outro senhor que, no caso da pulhice e nas presentes circunstâncias, levava uns bons palmos à frente do rei do petróleo. Mas, a sua sabedoria aconselhava-a a permanecer no seu canto, esperando o rir de quem ri no fim, que sempre fora o melhor riso de todos. Juno, essa, de facto, foi a primeira grande dissidente. Depois de ter sido protectora das mulheres, sobretudo das casadas, há umas décadas que se tornara feminista dos quatro costados. Mal descobriu a pÃlula e queimou o soutien, desleixara-se um bocado. Deixou de varrer a casa e de cuidar dos filhos. Como até aà tivera uma existência atormentada pelos ciúmes de outras mulheres, acabou por negar-lhes protecção. Daà que muitos casamentos se tivessem estatelado no chão, quando ela passou a olhar as congéneres mortais com olhos de Medusa e a distribuir uns venenozitos previamente retirados da caixa de Pandora, que foram as suas duas grandes aliadas terrenas. Até Gaia se fartou da terra e da relação incestuosa que tivera com Urano, abandonando-o mesmo antes de pôr os pés fora do clube. A seguir à s Marias foram-se os Manueis, tanto os mais fortes como os mais fracos. Cupido, sendo filho de quem era, a bela Vénus, não admira que tivesse seguido as pisadas da mãe, cortando a torto e a direito na conquista do amor. Muito jovem e bonito, como qualquer cria, gostava de brincar. As setinhas que arremessava ao coração do pessoal davam-lhe tanto gozo como roer um chinelo dá a um cachorrinho na altura do crescimento. De qualquer forma, nos conclaves, a opinião do deusinho era sempre bem vinda. O rapaz era dos poucos que sabia manejar bem o computador. Estava até incumbido de escrever as actas e enviar emails. Mas também ele abandonou o clube. Agora, sendo mais um dissidente, divertia-se nas discotecas a dançar umas músicas frenéticas, que lhe agitavam as ideias comungadas com a nova geração. Make love not war era o lema de Cupido. E ele cumpria-o à risca. Em maré de decadência, nem Baco conseguiu resistir à debandada. Como sempre, passava a vida nas tabernas onde comia umas valentes caldeiradas de enguias bem regadas com vinho do Cartaxo. Quando estava ainda mais ou menos sóbrio, lá se aventurava numas casas mais ou menos suspeitas, repletas de alguns homens e de belas mulheres, disposto a dessedentar a luxúria do corpo. Estas investidas eram sempre levadas a cabo de manhã, enquanto os vapores do álcool não lhe tivessem ainda toldado o cérebro. A criatura, nos seus poucos lampejos de lucidez, receava que, se tivesse abusado dos canecos, ficasse sujeita a que a sua chave de fendas lhe pregasse uma valente nega, na hora da verdade. Apolo sempre fora muito bem cotado no plantel das divindades. Era, à semelhança de Minerva, um deus muito ocupado. Repartia o seu tempo entre a medicina e a história da civilização. Mas, como era muito mÃstico, dedicava-se também a consultar os oráculos, ditando, depois, as profecias sobre a ordem do mundo. Porém, do que ele gostava realmente era da música. E, desde que decidira deixar as tertúlias divinas, andava ele, de violino na mão, a sacar acordes do instrumento, inspirando com isso os terráqueos. Em tempos, uns senhores das terras do tio Sam, quando quiseram trocar os sonos à Lua e tentar pô-la a dormir à noite para ver se ela acabava com aqueles hábitos de prostituta a andar de quarto em quarto, até deram o nome de Apolo ao aparelho em que chegaram até ela. Foi uma altura em que o titio ficou mais inchado do que um pavão e também foi por essa época que os sobrinhos pensaram que doravante seriam eles a dar-nos música. Contudo, presentemente, Apolo tinha entre mãos uma questão bastante delicada. Andava lá pelo Porto, na Rotunda da Boavista, a fiscalizar a casa que tem o nome da sua arte preferida e tentava, ainda, dar um destino condigno ao edifÃcio transparente plantado junto ao mar, perto do Castelo do Queijo. De maneira que regressar ao clube era algo a milhas de distância das suas intenções. Morfeu sempre foi um não te rales. Nunca dava por nada do que era tratado nos concÃlios. O que ele mais apreciava era uma boa cama onde pudesse dormir regalados sonos. Mas, apesar de um bom leito ser o seu lugar de eleição, nem por isso era muito esquisito. Um sofá servia-lhe perfeitamente para tirar uma soneca e até uma cadeirita, por mais de pau que ela fosse, lhe servia para tirar uns cochilos. A tal ponto que muitos deputados da Assembleia da República adquiriram esse hábito, dormindo, se fosse preciso, até de pé como as galinhas, ao som das vozes monocórdicas dos parlamentares no uso da palavra. Um banco, de jardim que fosse, era razão mais do que suficiente para ele deixar definitivamente o clube e entregar-se sem reservas aos braços do sono. Saturno, nesta confusão geral, quando viu os tomates e os pimentos de Espanha a invadirem os hipermercados, decidiu que ser o deus das colheitas era uma tarefa ingrata. No paÃs onde vivera uma boa parte da sua vida, Portugal, a agricultura estava pela hora da morte. As maçãs morriam comidas pelos bichos e os subsÃdios da EU, que deveriam ter reestruturado o sector, tinham sido convertidos em jipes que se passavam desde o Minho ao Algarve. E assim Saturno se transformou em mais um dissidente do clube dos deuses, saturado de tanta inanidade. Restava Pã. Ao longo dos tempos, o ministério e as diversas secretarias que tutelava sofreram vários reveses. Brucelose nas cabras e nas ovelhas, loucura das vacas, peste nos porcos, nitrofurâneos nos frangos e, por tudo isto, não havia de certeza nenhum deus capaz de resistir a tantas maleitas. Apesar da sua fealdade pintada com pernas, orelhas e cornos de bode, não era justo menosprezarem-lhe a carreira que desenvolvera no Olimpo, durante séculos e séculos. É certo que ele se divertia um bocado, tocando aquelas flautas de cana e assustando tanto a floresta como os homens, mas, tudo isso, a seu ver, não era razão para lhe boicotarem o trabalho. Agora, estava na altura de bater com a porta daquela loja maçónica e de ir assombrar os talhos, onde a carne estava cada vez mais sujeita a que lhe passassem atestados de mau comportamento. Júpiter, aparentemente, assistia à degradação do clube sem que isso lhe fizesse qualquer mossa. Mas, na realidade, como presidente dos deuses e, ultimamente, insuflado com as novas ideias de democracia, não estava nada mais nada menos do que a dar corda aos seus membros. Afinal, um verdadeiro deus conhece tudo, até o livre arbÃtrio, e cada um tinha o direito de frequentar os botecos que quisesse... Não esteve nos seus planos, durante uns bons milénios, interferir com a vontade de cada um. Contudo, e perante tantas teias de aranha que tinham invadido a casa e de tanto lixo acumulado, Júpiter começava a questionar a serventia dos deuses, a quem pagava ordenados chorudos sem ver qualquer obra susceptÃvel de merecer a sua aprovação. Além disso, eram as contas de água, luz e telefone que tinha de pagar todos os meses. E o pior de tudo era a fama por todo o Olimpo. As coisas andavam a passo de caracol, de tal forma que até já se contavam anedotas a partir das dos alentejanos. Mesmo Vénus já não era a mesma. Recentemente, vinha demonstrando falta de vigor nas tarefas da sua incumbência. Andava lenta de raciocÃnio e até, quando fazia amor, não sabia se havia de sentir gozo na altura ou se o deveria sentir só no dia seguinte. Por todas estas razões, era chegada a hora de dar um murro na mesa e reunir com aqueles desvairados, tentando dar um destino ao clube. Júpiter, mal concluiu que o mal era de morte, mandou chamar Mercúrio, ordenando-lhe que entregasse uma convocatória a cada um dos deuses, para um conclave. Mas, chegada a altura, não apareceu ninguém e até Marte, Neptuno e Plutão se ausentaram, apesar de o clube ser para os três uma espécie de segunda casa. Farto daqueles tontos, Júpiter, embora não tivesse quorum, decidiu levar por diante a ideia de dissolver o clube. Então, depois de uma pequena dilação como mandam as regras das reuniões, sentou-se na mesa, alisou as barbas, puxou de uma pena de pato, tirou a tampa do tinteiro, agarrou numa folha A4, molhou a pena na tinta e, passando a mão pelos galões que lhe conferiam o estatuto de chefe supremo, por divino decreto escreveu: - Declaro, de direito, extinto o clube dos deuses que, de facto, há uns tempos vinha sendo uma grande ribaldaria. E mais declaro que, por minha divina vontade, os homens, porque não se governam nem se deixam governar, doravante ficarão todos entregues à bicharada... Com uma pequena ressalva: a oficina de pirotecnia de Vulcano continuará em funcionamento e, por entre foguetes e mÃsseis, por lá vai continuar a haver muita lenha para todos se queimarem....
Olimpo, 2004-03-07
Zeus − mais conhecido por Júpiter
|