Djabal
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« em: Fevereiro 26, 2009, 12:44:21 » |
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A lua orbita a Terra, mas existe um terceiro corpo, o Sol, que complica enormemente a questão. Enquanto a Terra e a Lua se atraem mutuamente, o Sol perturba a posição da Terra e produz um feito bamboleante na órbita da Lua. É possÃvel criar equações para determinar os efeitos de qualquer um desses corpos, mas os matemáticos do século XVIII não conseguiam incorporar um terceiro corpo em seus cálculos. Mesmo hoje é impossÃvel obter a solução exata do chamado “problema dos três corposâ€. Simon Singh in ‘O último teorema de Fermat’
Sirvo o jantar. A comida sem carne. Apenas verduras, legumes cozidos, caldos e frutas. Primeiro coloco a mesa. O filho ocupa a cabeceira. O pai, sempre ao lado, deu o lugar de seu pai ao filho. Incomoda-se de ocupar aquele lugar. Ele gosta especialmente do caldo aguado de feijão, quase sem grãos. Um patrão religioso. Lembrava-me monges e voto de silêncio. Ficava ouvindo música durante horas e horas. Incapacitado e atrofiado a ponto de não conseguir segurar o livro para ler. A mulher ou o filho liam. Música e leitura. Dizia: “Cada vez que ouço música lembro o professor de música corcunda do primeiro grau. Os padres não relutaram em contratá-lo, eram patrÃcios. Professor Leopardi. Ele regia com grande facilidade nosso coral improvisado, encontrava a nossa voz. Conseguia tirá-la de dentro. Regendo-nos não havia nenhuma desarmonia possÃvel. O inacessÃvel Sempre se apossava de nós. Éramos sócios do Infinito. Lembro dele ao fundar sua efêmera escola. Passado algum tempo passei em frente, no horário de saÃda dos alunos, esbarrei no mato crescido e no cadeado fechando o portão.â€
Hoje reli a história de um teorema de matemática. É tão reconfortante saber que existe um campo do conhecimento onde não existe qualquer incongruência. Se ela surge, deixa de ser um teorema e passa a conjectura. Relembro o conceito de números. Racionais e irracionais. Reais e imaginários. Primos. Primos irregulares espalhados entre os restantes. Amistosos: número cuja soma dos divisores resulta no outro, amigo. Reciprocamente a soma dos divisores desse amigo dá aquele. Simples, direto. Não há probabilidade de erro.
Ford Maverick vermelho com faixas pretas laterais. Estacionado. Desembarca um casal. Ele de estatura mediana, cabelos ondulados, formando um topete que já foi charmoso. Vestido com uma calça de brim, bem passada, formando vinco, camisa branca engomada, aberta até a metade do peito, colarinho duro, sapatos pretos, com salto, um maior que o outro. Usa dois castões para sustentar seu descompasso. Ela parecia mais nova, corpo bem feito, cabelo curto, castanho, liso e simétrico. O rosto monótono, olhos castanhos, a boca de lábios grossos, mãos curtas e dedos grossos. Poucas e berrantes jóias. Caminha mais rápido, apresenta-se à recepção, indicando que havia marcado horário.
São encaminhados para uma sala austera, estofados negros, móveis de mogno, tapetes antigos, estante de livros que forra uma parede inteira, exceto no ponto onde está uma mesa comprida, sem pontas. Atrás dela o entrevistador.
Olhar firme e atento. Atende ao casal, depois de sentados, iniciam a conversa. O homem diz que foi recomendado por um amigo comum, apresenta a esposa e o seu currÃculo. Faz uma retrospectiva dos seus sucessos no passado. Liderou algumas equipes de vendas, vendeu apartamentos em vinte e quatro horas, no perÃodo do boom econômico, na década de oitenta. Desenvolveu loteamentos no interior do PaÃs. Liderou escritórios de filiais no Nordeste. Conhece Salvador, Recife e Fortaleza. Conversou amistosamente, com grande segurança, porém algum gaguejar apareceu quando foi perguntado sobre sua atividade atual. Não tinha nada para falar. Por mais que tivesse pensado nesta inevitável pergunta, não conseguiu concluir uma história que justificasse o desemprego atual. Sentiu um tremor no solo e o ar irrespirável. O entrevistador até então atento a tudo que ele dizia, passou a olhar para o lado da tela do computador, encontrou alguma resposta urgente a escrever e continuou ouvindo apenas, os olhos e o cérebro estavam à disposição daquela. A mulher o socorre com alguma observação, para ganhar algum tempo, dizendo da decoração, do atendimento de que foram alvos pela secretária. Elogiou o treinamento concedido.
O silêncio embaraçoso não se desfazia. O entrevistado, afinal, contou a verdade, na falta de uma mentira palatável. Havia deixado o último emprego. Não havia mais desafios para enfrentar, aliás, eram sempre os mesmos, e isso não o motivava mais. Precisava de algo além. Tentou montar seu próprio negócio. Uma representação de água aromatizada. Vendia água com sabores. Limão, morango, grapefruit, blueberry, raspberry. Ouviu a seguinte observação: “Ah, você pretende concorrer com a Coca-Cola?†Gelou. A realidade se desprendeu como uma placa de gesso caindo do teto naquele momento. Sentiu a farinha no ar, o barulho incômodo. E iniciou o trecho final da entrevista, rumo à despedida e a desculpa piedosa de um inexistente telefonema futuro.
O entrevistador terminara o seu curso de graduação. Pretendia continuar a carreira acadêmica e se candidatara para uma vaga no curso de mestrado. A vaga é escolhida entre dois finalistas, após a aprovação mediante teste da matéria relacionada. Havendo o conhecimento indispensável, avaliava-se o projeto de vida do candidato. Qual o mais indicado, segundo o julgamento do orientador. O entrevistador pensou que ninguém melhor que ele poderia se candidatar; possuÃa todo tempo disponÃvel, exceto oito horas de trabalho. Haveria de ajudar ao desenvolvimento da matéria. Seria um pesquisador puro. Quem sabe um professor? Foi alertado de que deveria mentir. O orientador não acreditava em aluno trabalhador. Ou aluno ou trabalhador. Argumentou: “fui o melhor no teste. Não poderia começar um curso baseado numa mentira. Era erradoâ€. Fez a sua entrevista, o professor, risonho, aberto, franco, carinhoso, parecia estar encantado com o aluno. Chegou o momento da pergunta fatal. “Você trabalha?†Ele deu a resposta: “SIM.†Perdeu a vaga. Fez outro curso e se candidatou a outro mestrado. Conheceu primeiro o professor, tornaram-se amigos. Depois fez a prova. Estudou italiano, o suficiente para traduzir um texto do teste. Sabia de todas as respostas que deveria dar. Fez o mestrado e nunca o utilizou. O sonho de ser professor houvera terminado sete anos antes e não percebera.
Na sala de jantar existe uma gravura do “Tem tem de estrela†ou “Gaturamo itê†(Euphonia violacea). Um passarinho de doze centÃmetros, com moela degenerada, possui baixa capacidade de processamento dos alimentos, portanto sua alimentação deve ser constante e jamais de alimentos grosseiros. O seu canto é muito apreciado, além disso, por ser capaz de imitar até dezesseis espécies diferentes. A imitação perfeita aumenta o número de pássaros ao seu lado. Aumenta a companhia, proteção. Ele parece saber que a melhor maneira de esconder uma folha é na floresta. Ele também quer esconder sua condição de primo irregular. Mas isso é uma especulação.
A certeza da congruência da matemática é – tanto quanto a verdade – abalada pelo fato de existirem problemas que os matemáticos não conseguem resolver. A indecidibilidade deu um toque humano à disciplina. Apesar de não se conseguir provar a consistência, isto não significa que eles são incongruentes.
Recebeu um telefonema daquele amigo que indicara o Maverick. “Você leu o jornal de hoje? O cara que indiquei pra vaga se matou. Encontraram o casal no apartamento com o gás ligado.†O patrão pegou o diário, viu uma foto de um casal deitado, semivestido, numa pose artificial.
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