Sistema psicossocial de chamar o nosso criado

[gdec2001]

Sistema psicossocial de chamar o nosso criado




Ó meu irmão da cor da noite
ó meu irmão vencido
escarnecido, envilecido.

Ó meu irmão espezinhado
escravizado,
sofredor
de todas as palavras de humilhação
que terminam em ado e em ido
e em ão,
sem esquecer o palavrão.
Ó comedor de bananas
e peixe seco
e carne seca e salgada
e farinha
e o tanas,
que em calão quer dizer nada.

Ó do pé leve,
ó corpo de danças
que são a longa preparação
para o acto breve,
em que se fazem crianças.

Ó filósofo da vida simples
e da fingida resignação,
preto da cidade,
irmão traidor do teu irmão.

Ó bebedor de cerveja
 e cabanga,
enganador da fome.

Ó mandrião,
apreciador honesto
do valor do trabalho
- que não é nenhum –
mata-borrão do sol.

Ó nu de tanga
com gravata de cores.

Ó de óculos escuros
sobre olhos
inexpressivos como furos.

Ó olhos expressivos de ignorância
e de credulidade e dor.

Ó matador de branco
lá no teu coração,
vingador como Jeová
mas que teme o trovão.

Ó número inconsciente
de dezena
de centena
de mil
de milhão.

Ó imbecil,
ó moleque,
vem cá ao teu patrão.

Geraldes de Carvalho

Beira-Moçambique 1960 ou 1961

"Novos e Velhos Cantos" Évora-2006

[Goreti Dias]

Eu ouso sonhar que se já não chame qualquer criado assim...

[gdec2001]

Talvez não...em voz alta.
Geraldes de Carvalho


Eu que julgava que este era um dos melhores poemas que escrevi... -Atenção, isto não significa que eu considere o poema bom : como eu o considero é cá comigo...- e afinal, é um dos menos comentados...( mais três pontinhos...)
 
abraços para todos Vossemeçês, meus amigo(a)s .
Geraldes de Carvalho

[Goreti Dias]

Nem em voz baixa!

[gdec2001]

Desculpe. Esqueci-me que era um sonho .
Geraldes de Carvalho

[Goreti Dias]

Nem mais!

[antónio paiva]

...

caro Geraldes de Carvalho,

não posso afirmar se este foi ou não o melhor poema que escreveu, já que, lhe adivinho extensa obra e, ainda que, na sua pura e legítima humildade, diga que devia ter começado a escrever agora (embora eu o entenda muito bem).

há algo que posso afirmar; este seu poema é um portento de ironia subtil, é um remédio cáustico que se toma lendo, cujos efeitos são sentidos muito depois de o ter lido.

e, tal como escreveu o poeta, que depois de morto me serve como um dos Mestres que venero e estudo:

"não tem como interpretar um poema, porque o poema é em si mesmo uma interpretação"
Mário Quintana

obrigado, muito obrigado pelos ensinamentos que me proporciana, a custo de uma leitura que me oferece.

respeitoso abraço.

[gdec2001]

Meu caro António Paiva
 V. me deixa sempre sem jeito .
Certamente não sou tão bom como V. pensa, pois sei que ainda tenho muito que aprender -às vezes só meditando-
Muito agradecido
Geraldes de Carvalho

Caro Domingos da Mota
Sei que a sua opinião é para respeitar, muito e tem toda a razão no que diz, mas, na terra em que vivia quando escrevi o poema, os negros eram considerados mais criados do que os pretos . Agora as coisas estão bastante melhores no que respeita aos negros... embora tenham melhorado menos no que respeita aos criados .
Obrigado pela sua apreciação
Geraldes de Carvalho