NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Å¿etembro 05, 2009, 14:27:52 » |
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O Motel da Escuridão levantava-se vacilante do solo apoiado em tábuas, muitas delas madeira solta que pouca protecção ofereceriam a quem quisesse abrigo do ameaço continuado dos elementos da noite infindável. Era um edifÃcio esguio cuja altivez afrontava os mais básicos preceitos arquitectónicos do equilÃbrio. Se o térreo oferecia uma base de sustento razoável, o andar imediatamente acima inclinava-se num perigoso ângulo à direita, para depois descair, no piso seguinte, para a esquerda. No pináculo do motel desconjuntado, o sótão parecia pronto para tombar à frente, derramando hóspedes e fiadas de telha sobre o alpendre de telheiro côncavo cujo soalho era um campo minado de ripas soltas, levantadas ou simplesmente desaparecidas. À chegada, o homem do chapéu de abas apenas vira iluminada uma janela, precisamente a das águas-furtadas, onde se adivinhava presença humana, talvez um hóspede. Mas agora, outras janelas deixavam escapar luz e entreviam sombras que se movimentavam no interior do edifÃcio decrépito. O Motel da Escuridão ganhava vida e piscava-lhes os seus inúmeros olhos fendidos.
O lume estalava acolhedor no caixote do lixo, uns trinta passos à frente do pórtico apodrecido do motel, equidistante tanto do rapaz arroxeado que se sentava no esqueleto da pick-up e que ainda não se apercebera da presença dos dois forasteiros, ou assim queria aos mesmos fazer crer, como do vulto desproporcionado do gordo com o sorriso de tubarão endereçado ao homem alto e à sua companheira de viagem, a mulher pálida. Mais a esta que, farta em beleza quase hipnótica e alheia a cobri-la, facilmente lhe desviou a atenção que até ali estivera centrada no outro.
- A menina chegue-se assim mais ao lume - disse o gordo na sua lamúria acriançada, sempre com o sorriso triturador. - A noite está a chegar e se pensa que está frio agora, espere um pouquinho e já vê. Venha. Venha. Deixe-me olhá-la bem. Isso são jóias a cobrir-lhe o corpinho?
A mulher não se mexeu, deixando-se ficar atrás do homem alto, quase completamente oculta pela gabardina deste e pela sua imponência fÃsica. Não o fez por ser de medos, que não era, mas por ter aprendido com o novo companheiro de caminho a ser cautelosa sempre que, por exemplo, chegavam a um desvio no caminho. O rapaz com o corpo coberto de manchas negras e o pote de banhas na cadeira de jardim eram as primeiras pessoas que encontravam, desde que o homem dos olhos brilhantes subira à sua carroça de cobertura de lona esfarrapada e a puxara para fora com braços fortes e acolhedores, arrastando-a para longe e para sempre da caravana. Nos primeiros tempos, a mulher apanhava-se frequentemente a olhar para trás, certa de que ouviria aproximar-se o resfolegar raivoso dos mastins dos seus anteriores donos. Sempre que voltava a olhar em frente, os seus olhos encontravam-se com os do companheiro, demasiado grandes e iluminados para serem verdadeiros e que ela não sabia decifrar. Com o ganhar de distância que as longas caminhadas a que se entregavam quase ininterruptamente, detendo-se no ritmo imutável apenas quando a exaustão os vencia, e mesmo assim por curtos perÃodos de descanso, a mulher passou a concentrar-se no caminho eternamente à sua frente, e nos perigos que dessa direcção pudessem vir.
O homem do chapéu bateu com o bordão no solo e respirou suavemente e só se ouvia o crepitar da fogueira improvisada e o constante lamento do vento que não soprava nem afugentava a neblina azulada que cobria o mundo que era a noite. O brilho dos seus olhos intensificou-se quando os mesmos rodaram nas órbitas com um imperceptÃvel ruÃdo mecânico. ImperceptÃvel, ou quase, que o rapaz da pick-up, como se o seu pescoço tivesse mola, moveu a cabeça para o olhar com olhos ferozes, profundamente enterrados no crânio que se tornava visÃvel sob a pele retesada. O homem do chapéu devolveu-lhe o olhar, um incapaz de ler as intenções do outro, a tensão entre ambos a fermentar.
- Não ligue ao rapaz - disse o outro sentado na cadeira. - É um dos nossos hóspedes mais antigos. Como nunca chegou a dizer-nos o seu nome, passámos a chamar-lhe “Sheriffâ€. Por causa daquela estrela que traz ao peito, está a vê-la? Nunca a tira.
- É mudo? - Perguntou a mulher sibilante, espreitando-o por cima do ombro do companheiro.
- Não era à chegada - respondeu o gordo na sua vozinha de ventrÃloquo, - mas então comi-lhe a lÃngua.
Desta vez o viajante sentiu a sua companheira sobressaltar-se atrás de si. O obeso figurão não desmanchou nem uma parcela daquele sorriso, mas permitiu-se lamber os lábios, que quase não existiam, com uma lÃngua completamente negra e sinuosa.
- Então Mando avisar a frontaria para que preparem os vossos quartos - Novamente a lÃngua movia-se cá fora, roçando os dentes afilados. - Ou preferem um de casal?
Os forasteiros guardaram silêncio.
- Gostamos muito de casais por aqui…
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