Goreti Dias
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« em: Fevereiro 06, 2013, 17:22:09 » |
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. Há muitos, muitos anos, o dia a dia das pessoas era difÃcil. DifÃcil como não somos capazes de supor nos nossos dias. Em tempo de seca prolongada, os homens ficavam de semblante triste, dor à flor do olhar. As peles do rosto encarquilhavam-se mais e as rugas ficavam mais fundas. Quando permanecia a falta de chuva, e os campos se tornavam cinzentos ou castanhos da terra nua, os homens bebiam mais e batiam –se com raiva desusada. E se continuava a não chover, organizavam-se procissões, faziam-se rezas e promessas. Tudo esperando que chovesse. E se a chuva persistia na ausência, começava-se a morrer. Morriam os bois, os cavalos, os cães... E as gentes. Muito tempo sem chuva e morriam muitas pessoas. Quando a chuva regressava, havia sempre alguma coisa que se tinha alterado. Alguém tinha, em pleno desespero, vendido os terrenos ao desbarato e agora com chuva não tinha terra. FamÃlias inteiras tinham morrido à fome e os vizinhos tentavam apoderar-se do pouco que tinha sobrado. Era sempre muito pouco, porque só quem era pobre é que morria. Era assim, nunca tinha sido de outro jeito. Ninguém considerava anormal. Não estranhavam os ganhadores nem se revoltavam os perdedores. Não que gostassem, não que deixassem de alimentar ódios e jurar vingança, mas estranhar, não estranhavam. Custódio era um dos ganhadores. A idade já era avançada, mas continuava a ostentar uma postura altaneira. Robusto de lidar com gado bravo, ancinhos e enxadas, terrenos a desbravar, intempéries e… homens. Diante dos senhores da Igreja e do palácio, mostrava-se rude, pouco dado a vénias. Tinha terrenos até ao rio e para lá do rio, comprados um a um, sem pressa. Alguns nas desventuras das secas, outros nem por isso. Nunca roubara nenhum, o que não significa que tudo tivesse sido comprado de forma pacÃfica. Mas, pacificamente, jamais se conseguem terras para lá do rio. Os seus inimigos contavam sempre algumas histórias trágicas, como a do Joaquim e outros que tais. Contavam-nas sempre nas tabernas, noite dentro, em voz sumida e raivosa, deitando olhares enviesados de ódio e rancor ao Custódio. O Joaquim era um bêbado. Disso ninguém duvidava. Também sabiam ao certo que tinha umas leiras férteis perto do rio. Bem cultivadas, poderiam abastecer a famÃlia de quanto bastasse para viverem bem. Mas não. Dificilmente colhia umas couves ásperas e umas batatas mirradas. O seu gado teimava em sair das suas terras e tentar a sorte na dos vizinhos. Mas veio um dia em que bebeu muito, muito mesmo. Quer dizer, bebeu mais do que todos os outros. Mas ele bebia quase sempre assim.
No dia seguinte, o filho descobriu-lhe os bolsos cheios de moedas de ouro. A custo, arrancou-lhe a confissão de que tinha vendido as terras. Ao Custódio.
O filho do Joaquim era diferente do pai, trabalhador e corajoso. Decidiu pedir explicações ao Custódio. Foi recebido de fraca vontade: - Que vens cá fazer? - Sabe bem que venho reclamar o que me pertence. Você é um ladrão. Roubou o que era nosso, enganou o meu pai. - Comprei-as, são minhas e paguei bem por elas. O teu pai não vendia melhor. - Oportunista é o que você é. O meu pai vai estourar todo o dinheiro na taberna. - Se o teu pai se porta como um néscio, problema dele. - E eu? Vou viver de quê? - Eu até tenho bom coração. Podes trabalhar para mim, pago-te o mesmo que pago aos outros trabalhadores. Comprei uma mata, está cheia de carqueja velha e silvado. Podes começar amanhã. O rapaz ainda puxou da faca de mato, mas seguraram-no. Na época medieval, nas terras mais escuras, rondavam as bruxas. Não eram todas más, mas iam fazendo as suas partidas e magias. Havia lugares onde ninguém ia de noite. Dizia-se que elas faziam danças com os espÃritos que vagueavam por ali. E que os faziam gritar coisas…mas só em certas alturas. Quando havia seca e o ódio crescia. Ouviam-se sempre nas secas. Começavam a atormentar os homens fortes e trabalhadores, à volta das mulheres bonitas e gritavam insultos. Mas era no Custódio que terminavam: - “Ladrão, velho, nojento â€. E faziam sentir a sua presença através de uma corrente de ar à sua roda. E continuavam “Ladrão, velho, nojento â€. As pessoas pouco ligavam. Não eram ladrões, aquilo não lhes dizia respeito. Mas percebiam a quem se destinavam os insultos.
O filho do Joaquim sentava-se debaixo de uma árvore a ouvi-los. - “Ladrão, velho, nojento â€. Por fim, voltou a seca. Não chovia há meses. Tinham-se feito muitas procissões e promessas, nada feito. Não chovia. As terras ficaram áridas, o gado começou a morrer. A fome plantou-se na terra. Eis que apareceram mais uma vez os espÃritos. Os espÃritos gritavam : - “Ladrão, velho, nojento â€. As pessoas juntavam-se em grupos e começavam a repetir as mesmas palavras. Primeiro em voz baixa, depois em gritos sonantes até à casa de Custódio e daà até ao mercado da aldeia onde apenas ele tinha alimentos para vender já que era dono do rio que passava por entre as suas terras. Apenas ele tinha água para regar as plantas e dar de beber aos seus animais. - “Ladrão, velho, nojento â€. Custódio correu em direção ao mercado, sempre rodeado pelo vento invisÃvel da presença dos espÃritos e acossado pelos gritos deles e do povo. Lá chegado, esbaforido, parou, olhou à sua volta, para a multidão que o seguia…hesitou… De repente, virou-se para os seus empregados e gritou - PONHAM TUDO A METADE DO PREÇO! Olharam confusos… - Estão à espera de quê? PONHAM TUDO A METADE DO PREÇO. A multidão gritava: - “Ladrão, velho, nojento â€. Os espÃritos faziam o pó levantar do chão no seu rodopio. E .as pessoas começaram a comprar… Os espÃritos calaram-se, os grupos desfizeram-se… Custódio, em casa: - Queriam matar-me, mulher. Perseguiram-me até ao mercado. Mandei meter tudo a metade do preço, só assim pararam. Foram as bruxas que mandaram os espÃritos. Não sei se da próxima saio disto vivo. A mulher responde: - Tens que tomar mais cautela - Aquilo é uma cambada, mulher. - Há quem não seja. O filho do Joaquim, só teve azar na vida. Até era capaz de tratar bem das terras e ganhar o seu sustento . A seca e a fome chegaram. Os homens sabem que vão morrer. - E depois? Eu não sei fazer chover. - Ajuda-os. Sem fome, não são violentos. - Sim, alguns. E os outros? - Os outros não valem nada. A seca e a bebedeira se encarregam deles.
Nada disto aconteceu. Se calhar, foram coisas que eu inventei para vir aqui contar. Coisas antigas que podem vir a ser novas. Hoje em dia é tudo diferente. É?!
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