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Autor Tópico: era elementar, da mais básica elementaridade, Vasco ...  (Lida 2724 vezes)
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« em: Julho 17, 2008, 21:49:40 »

É elementar. Da mais básica elementaridade, Vasco. Até eu que sou analfabeta já sabia isto. Sabia que isto podia acontecer …

Como é que não sabias? Logo tu, um Doutor, um senhor de leis e de códigos….

Os meus códigos, Vasco, sempre foram da honra e da verdade. Do respeito e da virtude. Da entrega plena e verdadeira. Sempre, ouviste bem, sempre. Até ontem … até hoje… amanhã? Sei lá …

Desde que começámos a namorar e ainda solteiros (e depois de casados, bem se vê…), só tinham olhos para ti. Vivia em função de ti. Dos teus horários, dos teus interesses, do teu bem-estar. Do teu prazer… sim, ouviste bem: Do teu prazer. É disso que te falo nesta manhã em que te escrevo…. Tu, Vasco, eras/foste, o Sol. O rei Sol. Eu? Um quase nada, uma partícula atómica, uma poeira cósmica, que se incandescia com a tua passagem…

Estás atónito? Que te fale destas coisas? A “analfabeta†a falar de assuntos “científicos� É, Vasco, a analfabeta, não o é completamente … mas olha, isso agora pouco importa. Não é de ciência que te quero falar. Falo-te de afectos. De prazer. De ter prazer, de dar prazer. E, ao falar-te disto, falo-te do que sempre me moveu, me fez estar contigo mais de trinta anos … Acreditar que um dia as coisas mudariam… Não mudaram, contudo, sei-o agora …

Sempre, ao longo de muitos e muitos anos, tentei que me desses valor. Valor ao que fazia, ao que dizia e, particularmente, ao que sentia.

É certo que não me batias, ou maltratavas. É igualmente certo que me davas alguma liberdade. Por exemplo: não fazias questão de me acompanhar ao supermercado, à praça, à lavandaria, ao sapateiro. Mas as coisas já eram diferentes se pensasse em ir sozinha a um museu, a um cinema, ainda que de dia … Não te fazia sentido. Como não te fazia sentido prescindires dos teus hobbies para me acompanhares nos meus… Afinal, coisas tão sem interesse, não eram Vasco?

Os anos foram passando. Aos poucos, deixei sequer de sugerir ir aqui ou além. Limitava-me a trabalhar, a cuidar da casa e dos filhos e a esperar que me olhasses. Suponho que por essa altura fiquei transparente. Deixaste simplesmente de me ver. De quando em vez, usavas um outro sentido, o tacto, e tocavas-me… e, lamentavelmente dei-me conta só me tocavas já o corpo, que a alma, Vasco, essa começou a subir, a subir, encontrou uma nuvem e … suponho que hibernou desmedidamente.

Também por essa altura, Vasco, tantas e tantas vezes, desejei hibernar com a alma. Hibernar e não acordar…

Sabes, Vasco, na verdade não me maltratavas… destratavas-me!
Já sei, vais argumentar que são palavras sinónimas… Lamento, Vasco, como sabes sou analfabeta, o Doutor aqui és tu. De palavras redondas saberás pela certa. Mas eu sei o que elas representam na carne, no peito …

Destratavas-me, Vasco, e ponto final. Em coisas tão pequenas, mas de enorme importância. Num simples relato de uma anedota, duma história, em que sempre fazias questão, fosse na presença de quem fosse, de me corrigir:
- “Rosália, não é nada assim …â€
E lá contavas, por palavras tuas, mais ou menos rebuscadas o que eu, ao meu modo simples contaria também … Os nossos amigos, tantas e tantas vezes, embaraçados, nada diziam.

Aos poucos, pedacinho a pedacinho, demiti-me da Rosália. Deixei de me interessar por mim, pela minha imagem, pela minha vida. Que vida? … Tornei-me amarga, como se tivesse deglutido um pote de óleo de fígado de bacalhau de uma assentada. Deixei de sorrir, muito menos dar uma gargalhada. O meu olhar turvou, como um rio em dia de temporal. E, Vasco, o pior, pior, é que o temporal permaneceu durante anos a fio…

É elementar. Da mais básica elementaridade, Vasco. Até eu que analfabeta já sabia isto. Sabia que isto podia acontecer … e aconteceu. Um dia, vá-se lá entender porquê, abri os braços, ou melhor, senti que no lugar de braços, me haviam nascido asas…
“As asas são para voarâ€, Vasco, como sabes…

Voei. Sozinha, Vasco. Sozinha. Visitei museus e galerias, fui almoçar a restaurantes, fui a cinemas e, pasma… andei até de teleférico. Não, Vasco, já não tem medo. Não tenho medo de nada… Claro que não te dizia. Não comentava. Mas também não comentava a ida ao talho ou à frutaria … Banalidades, Vasco. Banalidades…

Olhei-me de frente e vi-me mulher. E, gostes ou não gostes, vejas ou não vejas, tomei conta de mim. E tanto me faz que me corrijas como não, que apregoes a tua sabedoria e a minha ignorância aos sete ventos… Que me não olhes … Azares, Vasco. Sou mesmo uma tela transparente… tão e tanto que não consegues captar o que me habita…

Hoje, Vasco, tenho outros códigos. Não tos vou revelar, não de todo. São os meus. E é por eles que me pauto, à margem dos demais, se tiver de ser. E, nesta lógica de código meu, aqui estou.

Está um sol radioso. A praia tem estado óptima, pese embora os comportamentos de certos indivíduos a quem não foram dadas lições de cidadania … Gente tão, mas tão ocupada, Vasco, que, tal como tu, trabalha no areal da praia … e, claro, grita ao telemóvel, e, claro, me invade a privacidade sem nenhum pingo de respeito pelo meu descanso (para não falar dos bem casados que, de braço dado com as legítimas, passam o tempo a “galar†as miúdas …). Bem, mas esses, fazem-me rir. Patetas!

Espero que estejas bem… voltarei um dia destes… afinal tenho todo o tempo do mundo. Não tenho trabalho mesmo, Vasco… há males que vêm por bem. Já trabalhei uma vida inteira, a pré-reforma não é afinal descabida. E, quem sabe, não seja hora de dar novo rumo à minha vida??? Li algures que existe sempre vida além da vida ... Esquece, Vasco, devaneios de uma simplória...


PS: Não fui ao supermercado, o frigorifico está vazio. Não te preocupes, não faço questão de ir contigo. Vai e diverte-te …

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Mel de Carvalho
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Laura
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« Responder #1 em: Julho 17, 2008, 22:06:34 »

Rosália e Dr. Vasco. Como dizia o princípio ou o fim do filme "Les Uns et Les Autres": Il n'y a q'une histoire dans la vie des êtres humains. Et elle se répète si cruellement comme si elle n’avait jamais arrivée.

Mas Mel, este texto é muito diferente dos seus. Nem parece um dos seus. Elementar e básico, sim, coisa que a Mel não é.
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« Responder #2 em: Julho 18, 2008, 07:55:41 »

Rosália e Dr. Vasco. Como dizia o princípio ou o fim do filme "Les Uns et Les Autres": Il n'y a q'une histoire dans la vie des êtres humains. Et elle se répète si cruellement comme si elle n’avait jamais arrivée.

Mas Mel, este texto é muito diferente dos seus. Nem parece um dos seus. Elementar e básico, sim, coisa que a Mel não é.

Laura, a Mel escreve muito ao sabor do acaso. Na poesia, porventura mais complexa. Nos contos, num registo mais directo. No caso, Rosália, de todo não é uma analfabeta. O enfoque aqui colocado no "analfabetismo" decorre de, Vasco, ao longo de mais de trinta anos "achar" que controlava a esposa passando-lhe sucessivos atestados de burrice...

Sim, é uma história repetida. Todavia, e pese embora as muitas liberdades adquiridas e conquistadas pelas mulheres, muito "aceite" por razões tão dispares como sejam, a cultura, a enculturação, os costumes, a tradição ou, tão só, o comodismo e o medo de encetar a mudança...

Rosália voou. Encontrou "códigos" seus. E, destemida, enfrentou Vasco, dando-lhe de presente o que ele lhe dava: a liberdade de ir ao supermercado. Azn rsrsrsr

Abraço, Laura. Deixo convite para que leia outros contos meus, se desejar, no meu blog www.noitedemel.blogspot.com, tag contosdemulheres
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Laura
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« Responder #3 em: Julho 18, 2008, 11:06:20 »

Vou aceitar o seu convite, com todo o prazer que ler contos me dá.
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Goreti Dias
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« Responder #4 em: Julho 18, 2008, 17:04:18 »

Tomar os outros por burros dá nisto...
Um belo conto!
Um beijo
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Goretidias

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Laura
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« Responder #5 em: Julho 18, 2008, 19:54:18 »

Esta tarde, fui ao blog da Mel e li alguns dos seus contos. É importante que se saibe que sou leitora da Mel há bastante tempo, até de outros sítios e se pode dizer que sou sua fã. :-) Aliás, se não comento mais, é porque já quase tenho receio de ser chata...

Gostaria muito de ver editados os seus Contos de Mulheres. Os que eu li no blog, têm o cunho da Mel. Que para mim, como já escrevi antes, são uma espécie de rendilha, que existe nos poemas, mas também existe nos contos. E nos contos, esta rendilha, este habilidoso entrançado das palavras, vê-se nos detalhes, nos pormenores, na linguagem. Mel, fui lá e li. E mantenho a minha opinião. Conseguiria descobrir as suas palavras nos contos que li, "... as novidades são dois dias", "coisa delambida" (estes dois, os primeiros que li no blog e os meus preferidos), "Porcos a pérolas..."... Neste, não sei porquê. não. Não me leve a mal. Será defeito da leitora? Talvez... Por vezes, a forma como nos sentimos também se entrança com as nossas leituras. Mas não creio. Porque estive hoje a ler os seus contos, os outros, e adorei.

Abraço,
Laura
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22segundos
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« Responder #6 em: Julho 20, 2008, 09:03:11 »

Parece de facto haver algo de inacabado, algo trôpego, neste relato da Rosália. Parece-me contudo o registo mais autêntico: o da mulher que se está a descobrir; o da mulher que se assume sua mas tacteia ainda na apreensão do que isso significa; o da mulher que se ressente (que até talvez nunca deixará de se ressentir, não obstante a liberdade tender a atenuar esse sentimento); o da mulher que tem novos códigos, secretos, por tão preciosos que não se pode correr o risco de os aligeirar, de os expôr aos comentários doutos ou às censuras do mundo.
Eu gostei muito de a ler neste conto, cara Mel (aliás como sempre),
Um abraço,

22segundos.
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marcopintoc
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« Responder #7 em: Julho 21, 2008, 12:04:55 »

Um excelente conto de mulher que nós , os homens , devíamos ler com mente aberta. Um dedo na ferida de tantos relacionamentos.

Abraço
Marco
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« Responder #8 em: Julho 24, 2008, 10:51:48 »

Uma mulher que se sacrificou a troco de nada, que se demitiu de si própria durante muitos anos e que finalmente ganhou a coragem para estabelecer mudanças.
Como sempre, escrita de forma irrepreensivel!

Abraço
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