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em: Março 12, 2024, 00:13:37
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Iniciado por Nação Valente - Última mensagem por Nação Valente
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II - Quando o telefone toca
A minha vida de detetive, dedicada a resolver pequenos casos de âmbito passional, não teve qualquer relevância até ter recebido um estranho telefonema. -É o detetive JotaCorreia? - perguntou uma voz feminina, que me pareceu não ser muito jovem. - Acertou. Em que posso ajudar? -Vi o seu anúncio no DN, e fiquei interessada nos seus serviços. É um assunto muito sigiloso. Se aceitar o trabalho enviar-lhe-ei toda a informação num envelope registado. Por enquanto quero ficar incógnita. - Aceito, pois é como detetive que ocupo o tempo. Pode dizer-me como a posso tratar? - Apenas por gata, ou se preferir, “gata dos telhadosâ€. - De acordo. Mas como posso informá-la sobre o andamento da investigação? - Continuarei a dar-lhe instruções. Até breve. Quando a chamada terminou, olhei para as águas milenares do Tejo e dei-me a pensar nos segredos que ali estavam guardados, escondidos para sempre. História de histórias, perdidas e nunca registadas nos manuais que divulgam os grandes acontecimentos: batalhas, invasões, cercos, calamidades, gestas heroicas, onde apenas sobressaem os feitos dos comandantes. E como o pensamento se desloca a uma velocidade que o nosso corpo não consegue acompanhar, vi-me, há mais de trinta anos, a atravessar o rio num barco chamado cacilheiro, no dia em que vim para Lisboa, procurar um rumo para a minha vida. Não trazia, naquele inÃcio da década de 70, outra ambição que não fosse arranjar um trabalho para poder sobreviver. Tinha acabado de cumprir o serviço militar obrigatório, com os dramas de uma guerra na memória, à qual sobrevivera com um louvor pelos serviços prestados à pátria e pela coragem em combate. Quem não a tem na inocência da juventude? A primeira preocupação, depois de me ter instalado na hospedaria da dona Francisca, com alojamento, comida e tratamento de roupa, foi arranjar uma forma de pagar a mensalidade de mil escudos que eram pagos adiantadamente, e que foram repartidos por semanas, com o generoso acordo da dona Francisca. No dia seguinte, fui contratado por uma metalúrgica sediada nos arrabaldes, chamada Precisão, como aprendiz de torneiro mecânico. Fabricavam peças que eram utilizadas na indústria militar. Nesses anos, o crescimento económico criava postos de trabalho e a oferta de emprego superava a procura. Muita da mão-de-obra do paÃs estava na defesa das colónias, em três frentes de guerra. Mas os vencimentos eram baixos e mal davam para pagar a hospedagem e os transportes. A experiência nessa fábrica foi curta. Ao fim de uma semana, com o saldo no bolso quase a zero, e com mais uma prestação de hospedagem para pagar à dona Francisca, despedi-me, a fim de poder receber esses dias de atividade. Sabia que não teria dificuldade em arranjar outro trabalho no sector industrial em crescimento. A ausência de muitos braços, ocupados em disparar uma arma, e o crescimento industrial nos arrabaldes da grande cidade, facilitavam a oferta de trabalho. Essa curta experiência, talvez por ser a primeira, ficou gravada nas minhas lembranças, de forma marcante. Nos poucos dias que estive na metalúrgica, fiz tarefas ocasionais com o pequeno grupo que me acompanhou, quase sempre longe das máquinas operadas por técnicos especializados. Uma ou outra vez, colocavam-nos a manejar uma broca mecânica para fazer furos em peças já construÃdas. Numa dessas vezes o companheiro, também jovem mas experiente, que se encontrava ao meu lado, apercebeu-se que eu estava a fazer mal os furos e na sua linguagem de torneiro mecânico disse: - Alto e para o baile. É pá, estás a estragar material quase pronto. Se o controle de qualidade aparece estás fodido! O controle de qualidade era feito por meninas jovens, formadas nas escolas industriais do regime, que inspecionavam o material na fase de produção. Fiquei paralisado sem saber como reagir. Mas o companheiro, depois de me corrigir, agarrou nas peças inutilizadas e atirou-as para um contentor de desperdÃcios, ao mesmo tempo que dizia. - Lá vai material para o galheiro. Livras-te de apanhar reprimenda das controladoras, mas pior que isso seria estas peças serem montadas no armamento, pois em vez de atingirem o inimigo atingiam o atirador. Vê lá se te concentras. Para a próxima não te safo, ficas entregue à bicharada - concluiu na sua linguagem de torneiro mecânico. Rosalinda, a minha colaboradora, trazia-me à mente a secretária do senhor engenheiro que dirigia a produção na fábrica metalúrgica dos arrabaldes. A secretária usava sapatos de salto muito alto, vestidos colados ao corpo como uma segunda pele, salientando as formas, ou saias rodadas que se levantavam a qualquer ligeira brisa. O cabelo loiro realçava o verde dos olhos enfeitados com longas pestanas. Na boca um batom vermelho carregado, dava-lhe um ar artificial de boneca. Deslocava-se meneando as ancas, provocando os novos operários presos nas suas tarefas. Era a antÃtese das meninas do controle de qualidade, simples e reservadas. Involuntariamente, sacudi a cabeça num ato de desaprovação campónia, no momento em que o senhor engenheiro a seguia e se apercebeu. Não se coibiu de comentar: - Então rapaz, não gostas? O companheiro que me ajudava na separação de material, comentou na sua linguagem de torneiro aprendiz: - Ó Correia, tu tens é inveja! Mas essa garina não é para o teu bico. Mas também te digo que depois de tirar o embrulho, é igual à s outras. - Pois, tem a mesma anatomia… - “Anatomo†quê? Agora usas palavras de vinte paus? - Quero dizer, tem as mesmas protuberâncias, os mesmos declives, os mesmos orifÃcios, as mesmas fendas. - Lá ‘tás tu! Ó meu… Tem mamas por baixo do pescoço, lugar para verter águas e outras coisas entre as pernas. E cinco dedos em cada mão, se não for aleijadinha… - Dizes bem, mas eu prefiro mais o tipo das moças lá da terra. Mais ao natural. Enquanto o companheiro se preparava para responder, pensei se não estaria a ser um pouco pretensioso, armado em naturalista campestre, um pouco bota-de-elástico, que ainda não se adaptara a vida cosmopolita da cidade. Falou e disse: - Ó Correia quanto a isso estamos na mesma onda. Prefiro as gajas simples, olha como as das batas pretas, que também nos curtem. Ontem ouvi uma delas dizer para outra, olhando para o nosso grupo “Ó Marinela†agora podes escolher aà um namorado.†Não me esqueci do nome porque tenho uma prima Marinela, que não desfazendo, é “um pedaçoâ€. E olha que esta Marinela também me levava. Ela não anda, desliza! Não é como a secretária a rebolar o rabo. Essas é que são as nossas gatas. Sabem cozinhar, passar a ferro, limpar a casa… Carago, distraÃ-me, está na hora de sair. Anda daÃ. Dou-te boleia na motorizada até à paragem do autocarro, senão vais um quilómetro à pata. E quanto à garina emproada, pensa nela quando quiseres aliviar a tensão.
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em: Março 09, 2024, 18:36:06
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Iniciado por Maria Gabriela de Sá - Última mensagem por Maria Gabriela de Sá
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AGUACEIRO Um bando de estorninhos no céu Numa manhã de fevereiro Em terra sinais de Amor Que parece mesmo Amor Inteiro. Ruma o bando para Norte Em rota conhecida Sem erro nem confusão Cumprindo a sua a missão de vida. Já o Amor Que parecia de inÃcio Amor inteiro Mal nasce vive já em pré-morte Como coisa esvanecida Sem rumo, nem norte Talvez longe do que seja a sorte a cada um devida. Cumpre o bando o seu destino Numa tarde de fevereiro. Já o Amor Parecendo a princÃpio mais frondoso do que a copa de um salgueiro Viveu ele tão curta vida Que mais se assemelha a um simples aguaceiro. Gabriela Sá
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em: Março 05, 2024, 18:49:49
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Iniciado por Nação Valente - Última mensagem por Nação Valente
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I - As minhas gatas Quando senti o bafo de uma mina a acariciar-me a pele, numa picada da guerra contra os turras, lembrei-me do meu avô Baltazar, no dia em me levou ,à feira anual para ver a magia no circo. Quando nasceu em 1897, a monarquia agonizava, metida em escândalos e debaixo da pressão dos republicanos. No paÃs pobre e atrasado, onde a pobreza era uma marca consentida, as elites citadinas com algum apoio no meio rural aburguesado, viam na República a solução para todos os males da nação. Cerca de cem anos depois, o mundo tinha mudado para melhor. Do meu avô resta a sua memória, por mais algum tempo, na lembrança dos seus descendentes e que se irá diluindo até se reduzir a um absoluto nada. Fui o primeiro neto que ele viu crescer. Hoje sou um sexagenário, a caminhar para o destino que nos é traçado no momento em que nascemos. Desde os tempos longÃnquos da infância, fiz um percurso desconhecido, comum a qualquer vulgar cidadão, terminando a vida ativa como subinspetor da PolÃcia Judiciária, que fui forçado a abandonar por limite de idade. Com origens numa aldeia raiana, vivo hoje na capital. Quando me tiraram o crachá, não me vi, ocioso, a deambular pelas ruas e praças, quiçá a jogar à s cartas em associações populares ou jardins públicos. Reinventei-me como detetive privado. Na minha casa, situada na encosta de Alfama, abri o meu gabinete de investigação. Criei a personagem Jotacorreia, que se promoveu nas páginas de anúncios de jornais como prestador de serviços de investigação. Chamo-me Júlio César Correia e vivo sozinho. O nome pomposo de um polÃtico romano foi sugerido pelo meu avô, artesão rural, mas homem de muitas leituras. O histórico Júlio César, um desconstrutor de nações e construtor dum império, para além da sua glória passada, tem as mãos vermelhas de sangue. Foi-lhe atribuÃda a frase, “nos confins da Ibéria existe um povo que não se governa, nem se deixa governarâ€. Depois de César vieram “bárbarosâ€, muçulmanos, castelhanos, franceses. Vieram e foram e esse povo continua presente. Em comum com esse César, só tenho mesmo o nome. E talvez a solidão que acompanha a vivência do poder. As minhas memórias são apenas atos banais, de amores passageiros, de guerras pela sobrevivência pessoal. A minha solidão foi assumida. Não casei nem me amancebei. Ainda tive dois relacionamentos que me marcaram durante a juventude, mas que se esfumaram tão depressa quanto nasceram no calor da paixão. Aida e Irene, foram as mulheres com quem me envolvi sentimentalmente e que deixaram marcas que nunca consegui apagar. Depois, casei com a polÃcia a tempo inteiro, de tal modo que a minha fidelidade continuou mesmo após ter sido descartado como uma peça usada. Durante anos, meses, dias, horas, após o trabalho, num ritual repetitivo, calçava as pantufas, lia os jornais vespertinos, fazia uma refeição frugal, bebia os uÃsques que me desse na real gana e fumava um charuto aromático para reduzir a ansiedade. Nunca me imaginei, nem em pesadelos, na companhia de uma mulher a chatear-me a “cachimónia†“Ó Júlio chega aqui, arruma-me essa louça, descasca-me essas batatas…†Mas essa vida, de boémia e simplicidade, é apenas recordação. O tabaco, foi o primeiro vÃcio que tive que abandonar, por causa de uma maldita bronquite, resquÃcio da passagem pelo clima húmido da Guiné, na guerra colonial. Do álcool tive de me divorciar depois de aposentado, por causa de uma cirrose. E as relações ocasionais com as mulheres esfriaram após problemas de quem foi premiado com próstata. São as chagas acumuladas pelas peripécias da vida e pelo irreversÃvel envelhecimento. Para ter algum consolo moral, têm lugar reservado na minha secretária de trabalho, uma garrafa de uÃsque e uma caixa de charutos, dos quais não usufruo o sabor, mas não dispenso o cheiro. Neste momento, a minha companhia sempre fiel, é uma gata chamada Judite. Judite porque era o nome da minha avó e a designação popular da PJ, que faz parte do meu ADN. O nosso primeiro encontro foi ocasional, mas chego a pensar que estava traçado nas palmas das mãos. Aconteceu no tempo em que ainda chegava a casa com a mente toldada por uma excessiva elitização, que me libertava das canseiras da puta da vida. Enquanto arrastava os pés pela calçada gasta por pés perdidos na poeira dos séculos, tinha o hábito de falar com um candeeiro que parecia atravessar-se no meu caminho. O monólogo com esse farol orientador do trajecto para casa, foi interrompido, certo dia, por um objeto fofo a esfregar-se nas minhas pernas. Com a visão algo turvada vi a gata. Sacudi-a mas ela não fez caso e seguiu-me até ao meu apartamento. Ficou a viver comigo. Faz-me companhia a troco de comida e de algumas carÃcias. Falo com ela de assuntos banais e até partilho inconfidências. Sei que não me contraria, não me responde nem me atazana a paciência, passe o plebeÃsmo, como uma gata de duas pernas. Depois de me formatar como detetive, contratei uma colaboradora para me ajudar na elaboração dos relatórios. Vem de manhã e sai à tarde. Chama-se Rosalinda. Ela e Judite são as gatas do meu presente. Rosalinda exerce as suas funções de forma discreta. É muito reservada. Falamos apenas de assuntos de trabalho. Contratei-a depois de se candidatar ao lugar de secretária, em resposta a um anúncio. Quando entrou para a entrevista, impressionou-me pela simplicidade e pela beleza. Demonstrou ter conhecimentos para a função que queria que realizasse. Num primeiro momento pareceu-me que já a tinha visto. Procurei-a nos recantos da memória. Recuei no tempo e vi-me no Rossio a ser interrompido no meu percurso por uma menina, a desabrochar para a juventude, que me queria vender flores. Recusei. Num impulso que me surpreendeu colocou-mas na mão. “Ofereço-tas gatãoâ€. Era então um jovem, neófito na cidade, para construir o futuro. Devolvi as flores, algo atrapalhado, e segui o meu caminho. Anos mais tarde, quando já era agente da PJ, entrou no meu gabinete, a menina das flores com perfume de mulher, como acompanhante do namorado, soldado da nação e preso militar, por ter vestido um casaco numa loja da baixa da cidade, com o qual ia sair, distraÃdo, sem pagar. Com um choro estridente, a moça, suplicou misericórdia. Durante a entrevista para minha colaboradora lembrei-lhe esses encontros: Disse-me que tinha casado com esse namorado, que agora era estivador. Tal como a Judite, foi outra gata que me pareceu ter sido fadada para fazer parte da minha vida.
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