Mel de Carvalho
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« em: Novembro 19, 2007, 19:03:11 » |
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Os olhos nítidos das cigarras observam os membros minguados das gruas e dos guindastes que já não transportam a areia desfalecida da manhã do rio.
Revejo um a um todos os choupos bafientos e nus. Norteio-me p’los salgueiros debruçados p’lo tórax no espelho opaco das águas. Pelas pedras roladas de mil jornadas. Viajo fragatas jazidas em busca de moliceiros, rumo ao norte, lá mais acima, a um espaço pantanoso, poluído e igualmente já sem vida. Desprendo-me da pele, da veste rouca, baloiço-me em ondas vagas, sou cobra, anfíbia à solta, envolta nos sargaços estrelados com que moldaste a frio os teus e os meus passos, na beira-mar do enredo duma vida.
Cedidos dos corpos, os gestos profanam-se maçudos e indigestos, em ausências de tabernas, ao vício pasmaceado do beber de pé, de goela aberta, do primeiro até ao último trago. Na deriva, fulgentes, os olhos das cigarras retalham o verde das azeitonas outonais, mascam fomes de papoilas rubras em bocas ainda mergulhadas nos sabores melífluos das últimas uvas. Videiras despidas, retortas, escorrem na terra a seiva retida.
O lugarejo da beira Tejo vareja-se e alvora na apanha residual dos últimos bagos. Somam-se nos carreiros histórias antigas, intrigas torneadas à bancada das horas, estancadas por garrotes e torniquetes, vontades esfomeadas de descer ao rio, de descer subindo o rio, em polainas de pernas altas, maquiavélicas e plásticas, dúcteis e sombrias, no esguio do ensejo de tomar o boi de frente, na plasticidade indecente de afagar arpoando a própria mente em dessalga e desalinho. De ser cálice sendo, ao mesmo tempo, o próprio vinho. No contraditório …
A lua engorda o horizonte. O Ribatejo afoga-se nos odores de casulos marsupiais, nas chinelas clandestinas dos avieiros e nos trocadilhos juncosos das varinas. Ou no seu oposto … No infinito horizonte passarinhos de seda presa não são mais que ventrículos em busca de acamamento. De acasalamento urgente na fímbria parcelar de ser verdade.
Esgueiro-me à colina do vento e nada vejo que não seja, pasto adentro, o meu cavalo alazão. Alisa o chão seco do terrado na espoliação do retorno a casa, onde o moço de estrebaria o aguarda sempre paciente e, sem que deseje ou queira, o liberta, no brunir do pelo, dos carrapatos e dos percevejos.
Bucólica a noite abre a boca ao bocejo lento, em devir. Ilumina as campinas nas lamparinas de azeite d’outrora conquanto as ninfas do Tejo se despem desposadas ao som de um realejo antigo.
Recolho as teclas, jejuo a fome dos alfabetos. Os olhos nítidos das cigarras recolhem-se igualmente em redes, nos umbrais entreabertos das teias dos insectos e, dos montes, descem agora para o meu colo pássaros incertos.
(Vala do Carregado, Nov. 2007)
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