Domingos e Júlio,
Perante dois homens da palavra, cuja grandeza de alma é bem maior que o meu universo. Não teria coragem para vos dar tratamento diferente, por ser uma tremenda injustiça para ambos, e uma violência para mim.
A minha admiração e respeito por vós é tamanha, que me faz corar de vergonha, por vos ver dar tudo de vós à escrita e, ainda conseguirem dar com humildade e talento, a vossa opinião a quem lêem. Coisa que eu não faço e, muitas vezes me leva a discutir comigo mesmo, por via da merda do feitio que tenho.
Com todo o respeito pelos anteriormente nomeados, cujas entrevistas li e apenas algumas comentei, também pela razão que acima referi. Para muitos uma atitude incompreensível, uma vez que também já me brindaram com a “estatueta” aqui no EA, e noutra freguesia. Mas no vosso caso tinha de abrir boca, claro eu tinha.
Não para vos falar de mérito, mas sim para vos falar de estima, respeito e admiração. Em igual medida por ambos. Justamente por isso, o meu gesto é igual para ambos, sei que entendem a minha atitude. Daí que, a homenagem que vos presto, seja exactamente a mesma para ambos.
Para terminar, dedico-vos este texto da minha autoria, com o qual participei no livro “Leituras Soltas”, uma edição da Fnac e do Liberal, lançado em Dezembro do ano passado.
Os Sonhos de Agapito
Sábado, 1 de Novembro de 2008, são duas da tarde e, encontro-me pela primeira vez na minha vida; perante o sério risco, de escrever um texto, que me irá tornar definitiva e irremediavelmente famoso. Eram estes os pensamentos de Agapito, um escritor medíocre.
Há quem defenda que os sonhos preenchem as lacunas da vida. Agapito desde tenra idade que adoptou essa filosofia. Vendo neles a possibilidade de se metamorfosear em todos os eus que o habitam. Ora nadando no líquido amniótico das sensações, ora rendendo-se ao efeito de crisálida. A espaços ganha asas e voa.
Diz-se que o homem é o único ser dotado de fantasia, Agapito não tem a certeza de isso ser uma verdade incontestável. O que por agora também não o preocupa. Sabe, isso sim; que tem um universo de sonhos, dos quais são feitas também; as suas fantasias.
Os sonhos de Agapito têm raízes de beirão e o amparo das fragas. O ardor da persistência, a frescura de alma, espelhada pelo lirismo que lhe sulca o pensamento. Haja mundo sem courelas nem estremas, e navios sem horizontes definidos. Basta mar. Basta sonhar. O sonho de um destino cultivando a esperança. E trabalho, muito trabalho, que os sonhos são de construir.
Por falar em trabalho; Agapito encontrava-se a braços com uma tarefa que de algum modo o constrangia. Um editor telefonara na véspera, propondo-lhe um desafio. Um texto com o mínimo de cinco mil e o máximo de seis mil caracteres. Sem mais coordenadas; sem tema, sem assunto. Atirou-lhe com o seixo às mãos; agora que o esculpisse.
O editor disse-lhe que tinha até terça-feira para o entregar. Que se tratava de um projecto de publicação importantíssimo. E, só teria a ganhar se fizesse um bom trabalho e cumprisse o prazo.
Agapito via-se pela primeira vez; na situação de escrever por “encomenda”, já que as composições do tempos de escola não contam. O seu ser de escrita é ferrado de anarquia e rebelde até mais não. Nunca se sentou na escrivaninha, com o sentido de dever; a fabricar angústias ou a forjar alentos. Deslumbra-o a fantasia à solta. Quando a escrita o chama ele vai, mas aí; a boca sabe-lhe a liberdade.
Ainda assim, encarou esta hipótese de metamorfose, como algo que lhe poderia ser benéfico. Uma certa dose de auto-disciplina não lhe faria mal por certo. Nem lhe afectaria a coerência dos sonhos. E sendo a fantasia também memória, de algo se haveria de lembrar, que o levasse a escrever. Nem que fosse um fio de água de outros tempos, a correr nas barrocas da sua infância.
Estava Agapito nesta lengalenga de cogitações, e sem que desse por isso, começou a germinar texto. Obediente e sem mais delongas, mergulhou no enternecedor chão de palavras, que lhe surgia diante dos olhos. A fantasia em alvoroço e o alargamento da consciência dos sonhos. A arte da renovação interior. Torrente de memórias.
Do seu universo de sonhos; fazem parte o sonho de ser escritor e poeta – mas dos bons. É sonho, quem se importa – a não ser ele. E, o sonho de transmitir aos mais jovens, a sua paixão pela leitura e pela escrita. No último caso, Agapito conta já com um razoável número de experiências. Qual delas a mais gratificante. Todas!
Pelas escolas onde tem passado, as crianças e jovens oferecem-lhe sempre uma brisa laboriosa, e sorrisos nos olhos a moer alegria. Das pedras nascem rosas, ó se nascem. Não tem nada para lhes ensinar; apenas sonhos para partilhar, e orelhas para os escutar. Viaja com eles até à raiz quadrada da fantasia. Qual seiva de metáforas a correr no sangue banhando almas tenras. Verdadeiras filigranas de poesia.
Como lhe dói, um certo escarnecer maléfico, atirado às dificuldades ingénuas na aprendizagem, de algumas crianças e jovens. Tais atitudes não lhe merecem mais do que; a designação de cepticismo de aldeia. A disfarçar a ineficiência de métodos e a inaptidão para formar o futuro.
Cada vez mais, nos tempos que correm, por detrás da curta existência de uma criança ou de um jovem, esconde-se um espesso manto de dor e sofrimento. Violam-lhes o corpo, o direito à vida por inteiro, os sonhos. E, como se já não bastasse; enchem-lhes o estômago de fome e o corpo de pancada. De vez em quando o egoísmo social; lá lhes concede pequenas porções de afecto anémico. Há quem viva e morra a roer granito o tempo todo.
Apesar de tudo, Agapito prossegue nas linhas do texto, qual peregrino fascinado pela perturbante beleza das palavras. Dá gosto observá-lo a mourejar com afinco na construção de um sonho. Um sonho que quer partilhar. As palavras comandam; ora castigam, ora redimem, e quando generosas bafejam e afagam. A fantasia floresce.
A escrita de Agapito vagueia entre o ímpeto e a convulsão, toma fôlego no alento desaguando amiúde na serenidade. Um sonho infinito que é tudo menos exausto, nem adormece de tédio. Há uma recusa determinada em navegar nas marés da desilusão. Pode ser romântico, disperso, apaixonado, inesperado e antagónico. Um dos seus pratos preferidos são as ferroadas ao quotidiano.
Gosta da serenidade que adorna o crepúsculo, rende-se sem hesitar à palpitação humana. O branco da cal e do luar são um pavio ardente de esperança. Ao amanhecer aguarda o romper do sol no alpendre dos sonhos. Abre o peito com vagar e deleita-se na sorna aconchegado no limbo do imaginário. Imerge a caligrafia com calma, o soneto é o texto por inteiro, o tempo sem horas, e mesmo quando algum sentido lhe acorda a alma, a causa é nobre.
Agapito leu algures, que muitos escritores, só nascem verdadeiramente, depois de o homem de que são feitos morrer. Nada que ele já não desconfiasse. Coisa tão tenebrosa quanto ridícula; da morte nascem escritores. E, tanto faz que sejam génios ou medíocres, só nascem depois de mortos. Mas Agapito sabe muito bem, que esse nascimento, não é mais do que uma ardilosa metáfora. Levada a cabo pelos especialistas das compilações, dos textos escolhidos e da poesia reunida. Enfim; a “arte” pós-morte e a apetência mórbida pela necrologia do saber. Um bom negócio a avaliar pela quantidade que se reproduz.
Seja lá como for, Agapito sabe que há muito caminho para fazer, e o melhor é ir andando. Há a vida, feita de sémen, de amor, silêncios, gritos, suor, ira, ódio, paixões, piedades, palavras, sonhos, universo, fantasias, aventuras, mundo. A prece repetidamente repetida; escrita nunca me abandones. Murmurava Agapito pelo caminho.
O texto a princípio nu foi-se vestindo, na oralidade de um silêncio quase audível. Em alguns momentos a arder em febres altas, a febre dos sonhos no calor das emoções e da fantasia. Agapito sabe que o dia-a-dia está sempre por perto. Tão perto quanto a conclusão do seu texto. Um pedaço de sonho dos seus sonhos, a amanhecer o futuro em voz alta, para que conste, para que se saiba, que há demasiadas palavras sepultadas em gavetas.
Mário de Sá-Carneiro não tem biografia, só génio.
Não, não é de Agapito.
É de Fernando Pessoa.
Funchal, 2 de Novembro de 2008
antónio paiva
Um grande abraço aos dois