Corria o Inverno de 1987. Um Inverno igual a tantos outros, um ano igual a tantos outros. Não fora o insólito do toque da campainha altas horas da madrugada e nada de registo marcaria mais um ano num calendário d’aldeia.
O toque era insistente, estridente. Furava as paredes e ecoava nos dois andares da moradia bi-familiar. Ao mesmo tempo, da varanda do primeiro andar, do postigo da porta principal do rés-do-chão, cabeças ensonadas perguntavam:
- Quem é? ... Quem chama? O que se passa ai?...
Tudo isto moldado pelos latidos dos cães, que, mais cedo que os donos,responderam ao som de chamamento.
- Vizinhos, vizinhos, ‘tão a assaltar a loja ...
- A loja?... Quem é que ‘tá a assaltar a loja? Ai, Jesus, credo, valha-nos Nossa Senhora, gatunos…
- Estão sim senhor, mas já estão presos …
- Estão presos? Como é lá isso, ó vizinho??? Ai, valha-me a Santíssima Trindade…
- Estão sim, que o fechámos-os por fora… ficou lá o meu irmão de guarda … estão lá dois dentro …
- Filha, filha, liga já à polícia, que eu levo a arma e vou já para lá …
- E se eles estão armados?... Pai, por favor, tenha cuidado …
- Francisco, tem cuidado, homem … pode ser perigoso…
- Ó mulher, vai mas é vestir-te, olha os propósitos … eu de mim trato…
E, dito isto, de caçadeira ao ombro, Francisco e o vizinho que o havia chamado, dirigem-se a passos lestos para a loja, a escassos 100 metros da moradia de família. Nos entre tantos, Maria, a filha, jovem casada e mãe de uma criança de quatro anos, chamava a polícia…
Uma hora depois, a polícia chega ao local do crime e encontra um casal de raça negra, ela grávida de fim de tempo, encurralados no mini-mercado. Dava-se o caso que, o estabelecimento em questão, tinha uma única porta e, os assaltantes não se tinham precavido contra a possibilidade remota de alguém por ali passar aquelas horas da madrugada… Por descuido, haviam deixado indícios da sua presença…
Ora ao passarem, os vizinhos (dois irmãos residentes no mesmo bairro onde morava o senhor Francisco e, curiosamente também eles de raça negra), estranharam os ruídos provenientes do interior e, de imediato, num acto de grande determinação, decidiram salvar a loja donde, anos antes, quando haviam chegado a Portugal, tantas e tantas vezes, haviam morto a fome.
D. Ermelinda era tida por eles em grande conta, mulher de princípios e de valor. De valor a D. Ermelinda, sim senhor, sim senhor!… Não hesitaram, merecia a ajuda.
Ajudariam!!! Defenderiam com a pele, se preciso fosse! Fecharam a porta! Trancaram como puderam. Montaram guarda …
A polícia chegou. Os assaltantes não passavam duns pobres diabos cheios de fome, afinal …
Um saco com uma garrafa de azeite, uma de óleo, um quilo d’arroz, um quilo farinha de milho … um chouriço de carne … enfim, um avio a preceito … mas nada de exageros, convenhamos ...
- Senhor Polícia, olhe lá … até conheço estes trates …
- Ora vocês, não basta o que comem fiado, agora roubam-me??? Uns murros bem assentes era o que tu merecias, dizia irado o Francisco para o larápio do sexo masculino… E não tens vergonha de trazeres p’ra qui a mulher? Nesse estado??? De barriga à boca??? …
O outro baixava a cara … chorava…
- Senhor Polícia … faz de conta que não foi nada… deixe-os lá… o pior é a fechadura, que só a posso arranjar amanhã … deixe-os ir.
- Não pode ser, senhor Francisco … há uma queixa, há flagrante delito … vão para a esquadra e amanhã são presentes a tribunal…
- A Tribunal? Só me metem em trabalhos … só me lixam, porra…
Assim foi. Dali, e contra a vontade de Francisco, os assaltantes foram conduzidos à esquadra e ao Tribunal da Comarca, não sem que Francisco, a sua filha que havia chamado a polícia e os dois irmãos que haviam feito a “prisão” dos assaltantes, se tivessem livrado de trabalhos …
Na manhã seguinte, a Toyotta do Francisco seguiu rumo ao Tribunal da Comarca, levando os quatro. O dono da loja, a filha e os vizinhos “detentores de larápios” …
Um a um foram ouvidos. Testemunhas e lesados. Francisco declarou que nada queria dos assaltantes.
Maria, também ouvida, via as horas passarem e a falta ao trabalho … Telefonara, é certo, mas tinha o dia estragado. Os vizinhos, a mesma coisa … meio-dia de trabalho perdido …
- Eu pago as horas a vocês, homens, asseverava Francisco, pago sim senhor. Não saem no prejuízo, vocês ganham à jorna …
- Nem pense, vizinho …
- Não saem no prejuízo, já disse. Passem na loja e levem que comer ...
- Logo se vê, então …
A conversa avançava … o acordo estava firmado. Levariam então almoço e janta … e pinga ... por paga da manhã. Pela amizade!
Sob vigilância da polícia, lá estavam os assaltantes… ela, encolhida, regelada, mais parecia um animal assustado. O frio da noite e a fome brilhavam nos olhos desmedidos. A barriga parecia querer explodir a qualquer momento … Maria olhava a cena sem saber que fazer. Doía-lhe a alma. Fome, era tudo fome e miséria …
Dirigiu-se ao café próximo … argumentou que tinha ela mesma, fome. Comprou umas sandes e um sumo. Voltou. Não sabia bem o que estava a fazer … fazia.
E, de repente, vê um grupo estranho a avançar direito a si. O seu pai, os vizinhos e … os assaltantes. Não podia acreditar … vinham todos juntos. Olhou o pai, meio incrédula …
- Disse que não queria nada deles … foram soltos… pediram-me boleia, não têm dinheiro … vão para casa … é no nosso caminho, justificava-se.
Francisco estava meio acabrunhado. Maria estupefacta e agradecida. Sim, com certeza… iriam todos juntos. A cena era caricata, ninguém acreditaria … surreal, pensava! Mas sim, que importava? Que mal havia? Sorria ... do caricato, do inusitado... e da solidariedade estranha. Sorria ...
Ninguém dizia nada … olhou a grávida … os olhos estavam ainda maiores, eram do tamanho do mundo… um mundo de fome. Estendeu-lhe, envergonhada, o embrulho … Sem uma palavra as sandes desapareceram em segundos … uma lágrima correu sem que conseguisse evitar… os restantes pares de olhos estavam no chão…
Alguns anos mais tarde, Maria, agora mãe de duas crianças, foi ao infantário público em que o filho mais novo, o João Ricardo estava. No meio de uma conversa, a educadora falou-lhe de um criança, um menino de uma outra sala de quem o filho era grande amigo… “um menino de cor, a Maria não conhece a mãe???...” E explicou-lhe …
Maria sorriu … o destino era tão curioso, mas tão curioso. Afinal, sim … “conhecia” … Um dia, há vários anos atrás, tinha-lhe dado um pacote de sandes e um sumo…
- Não, Graça… não conheço! Mora por ai tanta gente nova … o que importa é que sejam amigos.
- São … são muito mesmo …
- É quanto importa ... a amizade!
Sorria!
No corredor do infantário, agora quase deserto, brincavam dois meninos: um loiro de olhos cor de mel e um outro, de cabelos negros e pele retinta.
Corriam em sua direcção ... Maria via agora claramente dois pares de olhos brilhantes, inocentes ... uns deles, enormes desmedidos ... ambos tinham milhões de sorrisos no olhar!
Sorria de novo e de novo, novamente!
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Este caso é absolutamente real. Garanto-vos!!!!